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RELATO DE CASO

Associação de paralisia diafragmática bilateral e paralisia da cintura escapular após correção de aneurisma de aorta: relato de caso

Luiz Marcelo Sá MALBOUISSON0; Denise PERES0; Sérgio AYAMA0; Maria José Carvalho CARMONA0; José Otávio Costa AULER Jr.0

DOI: 10.1590/S0102-76382001000200011

INTRODUÇÃO

A paralisia diafragmática bilateral é uma das complicações respiratórias mais graves observadas no período pós-operatório de cirurgia cardiovascular. Os pacientes que desenvolvem esta complicação necessitam de suporte ventilatório prolongado e apresentam alto risco para o desenvolvimento de pneumonias associadas à ventilação(1). Na presença de paralisia diafragmática bilateral, o desmame da ventilação mecânica é dependente da integridade dos músculos acessórios da respiração, que devem compensar a perda funcional do diafragma. A associação de paralisia frênica bilateral e paralisia da cintura escapular representa complicação pós-operatória rara e desafio terapêutico, uma vez que parte da musculatura acessória está não funcionante. Neste relato, apresentamos a associação de paralisia frênica bilateral e paralisia da cintura escapular em paciente submetida à correção de aneurisma de aorta ascendente e suas implicações no desmame da ventilação mecânica e na terapêutica.

RELATO DE CASO

Paciente M. L. M., 43 anos, sexo feminino, com diagnóstico de aneurisma de aorta tipo A, com diâmetro máximo de 65 mm, em tratamento clínico com betabloquedor e vasodilatadores orais. Deu entrada no Serviço de Emergência do Instituto do Coração do HCFMUSP apresentando quadro de dor precordial irradiada para dorso, náuseas e sudorese intensa. Encontrava-se hemodinamicamente estável à admissão e os pulsos periféricos estavam presentes ao exame clínico. Tomografia computadorizada de tórax evidenciou aumento do diâmetro máximo do aneurisma para 72 mm (Figura 1), sem sinais sugestivos de dissecção, sendo indicada operação após estabilização clínica do quadro. A paciente apresentava como antecedentes cirúrgicos lesão de artéria braquial direita, sendo feito enxerto braquio-braquial de veia safena sem sucesso.



A operação para correção do aneurisma de aorta foi realizada nove dias após a admissão da paciente ao hospital. O procedimento cirúrgico foi iniciado após anestesia geral e canulação artério-venosa femoral esquerda. Foi instituído hipotermia profunda à 17º C, seguida de parada circulatória total. Foram utilizadas cardioplegia cristalóide tipo Saint Thomaz e retroperfusão cerebral. A aorta ascendente foi substituída por prótese de Dacron número 30, preservando-se a valva aórtica. O tempo de parada circulatória total foi de 25 minutos, com tempo de circulação extracorpórea de 2 horas e 10 minutos. Não houve intercorrências durante a operação.

A paciente foi admitida à Unidade de Terapia Intensiva hemodinamicamente estável, recebendo dobutamina e nitroprussiato de sódio. O suporte ventilatório foi ventilação mandatória sincronizada intermitente (VMSI) com pressão controlada de 25 cmH2O, freqüência respiratória (FR) de 12 ipm, pressão de suporte (PS) de 20 cmH2O, pressão positiva ao final da inspiração (PEEP) de 8 cmH2O e fração inspirada de oxigênio (FiO2) de 0.6. Devido à agitação psicomotora ao despertar da anestesia, a paciente foi sedada com propofol em infusão contínua e mantida intubada por 24 horas. No 1° dia pós-operatório (DPO), observou-se diminuição dos murmúrios vesiculares à ausculta pulmonar e elevação da cúpula diafragmática direita à radiografia de tórax. O desmame da ventilação mecânica foi realizado sem intercorrências e a paciente foi extubada com PS de 8 cmH2O, PEEP de 10 cmH2O e FiO2 0.4, mantendo volume corrente expirado de 400 ml e oxigenação satisfatória. Após a extubação, foi instituída ventilação não invasiva (VNI) com PS 20 cmH2O, PEEP 20 cmH2O e FiO2 0.4.

No 2° DPO, observou-se piora do padrão respiratório, com respiração paradoxal após interrupção da VNI, acompanhada de rebaixamento do nível de consciência, havendo necessidade de reintubação. Instituiu-se ventilação mecânica com PEEP em 10 cmH2O e PS em 20 cmH2O, FiO2 de 0.4 e iniciado plano de desmame da PS em 1 cmH2O a cada 12 horas. Radiografia torácica mostrava elevação bilateral das cúpulas frênicas sugerindo paralisia frênica (Figura 2). Ultrassonografia de tórax e tomografia de tórax confirmaram o diagnóstico (Figura 3). Manobras de recrutamento alveolar em ventilação espontânea com PEEP de 20 cmH2O foram realizadas a cada 3 horas. No 4° DPO, a paciente apresentou episódio de broncoaspiração, que evoluiu para pneumonia, sendo tratada com ceftriaxone e clindamicina. No 9° DPO, com os parâmetros de ventilação mecânica baixos, foi realizada nova tentativa de extubação. Após algumas horas, a paciente evoluiu com respiração paradoxal, hipoxêmia e hipercapnia, sendo reintubada. Traqueostomia percutânea à beira do leito foi realizada no 11° DPO. No 12° DPO, foi observado ao exame clínico ausência de movimentos da cintura escapular, ombros, cotovelos e de alguns grupos musculares cervicais. A avaliação neurológica evidenciou paralisia braquial proximal bilateral e da cintura escapular, sendo feito hipótese diagnóstica de lesão isquêmica da medula. Realizado ressonância nuclear magnética que confirmou o diagnóstico. No 14° DPO, a paciente fazia pressão inspiratória máxima (PImax) de 32 cmH2O, pressão expiratória máxima (PEmax) de 36 cmH2O e foi iniciado treinamento muscular com carga de ¾ 13 cmH2O, que representava 40 % do valor de PImax obtido. Episódios de pneumonia associada à ventilação mecânica contribuíram para a falência das tentativas de desmame da ventilação mecânica. No 40° DPO, repetiu-se ultra-sonografia torácica que constando-se ausência de mobilidade diafragmática bilateral em ventilação espontânea tentando-se, então, ventilação com pressão negativa, com pressão inspiratória de ¾ 20 cmH2O, tempo inspiratório de 2 segundos e freqüência de 12 IPM. A ventilação por pressão negativa foi suspensa no 43° DPO devido à inadaptação da paciente à ventilação. No 47° DPO, detectou-se aumento da área cardíaca à radiografia de tórax, sendo realizada tomografia de tórax que evidenciou coleção retroesternal, presença de derrame pericárdico moderado em região posterior e atelectasias basais bilaterais. No 49° DPO, foi iniciado tubo T com válvula de PEEP de 10 cm H2O por períodos de 15 minutos durante a manhã e a tarde. Instituiu-se controle diário de peso e balanço hídrico negativo com diuréticos. Os períodos de nebulização em tubo T foram progressivamente aumentados.





No 68° DPO, a paciente evoluiu com instabilidade hemodinâmica, oligúria e desconforto respiratório durante a nebulização, sendo realizado um ecocardiograma que evidenciou derrame pericárdio importante com sinais de restrição, realizando-se drenagem pericárdica. Devido às múltiplas falências no desmame da ventilação mecânica, a paciente começou à evoluir com depressão. Foi iniciado acompanhamento psicoterápico e antidepressivos orais. Novamente tentou-se nebulização em tubo T com válvula de PEEP durante 15 minutos pela manhã e pela tarde no 73° DPO, a PImax era ¾ 20 cmH2O e a PEmax de + 30 cmH2O. No 81° DPO, conseguiu-se tempo total de nebulização de 4 horas e 30 minutos com PImax de ¾ 20 cmH2O e PEmax de + 42 cmH2O. No 90° DPO, a paciente manteve-se em nebulização por 24 horas consecutivas, com PImax de ¾ 20 cmH2O e PEmax de + 68 cmH2O ao final das 24 horas. A cânula de traqueostomia foi trocada por cânula metálica no 96° DPO. No 101° DPO foi retirada a cânula de traqueostomia e ocluído o traqueostoma com curativo. A paciente recebeu alta da Unidade de Terapia Intensiva no 104° DPO. Na enfermaria, foi repetido ultra-sonografia de tórax que evidenciou paralisia frênica bilateral. No 111° DPO, a paciente recebeu alta hospitalar mantendo a paralisia frênica e da cintura escapular, mas com ventilação satisfatória.

COMENTÁRIOS

A paralisia frênica bilateral é complicação freqüentemente observada no pós-operatório de cirurgia cardiovascular (2-6), habitualmente secundária à disfunção ou lesão do nervo frênico (7). Caracteriza-se por insuficiência respiratória hipercapnica de difícil manejo terapêutico e de desmame difícil do ventilador mecânico (6,8). A fisiopatologia da disfunção frênica no pós operatório de cirurgia cardiovascular é diversa sendo descritos: circulação extracorpórea com a utilização de hipotermia sistêmica profunda (3,9), hipotermia tópica no saco pericárdico (2) e manipulação cirúrgica (10) Nos pacientes que desenvolvem esta complicação, o sucesso do desmame da ventilação mecânica é primariamente dependente da capacidade da musculatura acessória em compensar o trabalho respiratório normalmente realizado pelo diafragma. Contudo, no caso descrito acima, houve também uma perda de força na musculatura proximal dos membros superiores, ausência de contratilidade dos músculos escalenos, grande peitoral e trapézio. Em vista do quadro clínico e do procedimento cirúrgico realizado, suspeitou-se de isquemia medular cérvico-torácica, confirmada através de ressonância nuclear magnética. A hipótese de isquemia medular cérvico-torácica explicaria todo o quadro clínico, uma vez que a inervação motora dos músculos acometidos encontra-se no território onde foram observadas lesões sugestivas de isquemia medular através da ressonância nuclear magnética. Entretanto, neste caso não foi possível excluir a participação de outros mecanismos como hipotermia e manipulação cirúrgica na gênese da disfunção frênica. A associação de paralisia diafragmática bilateral e da cintura escapular, incluindo alguns músculos acessórios da respiração, determina como descrevemos uma forma grave de insuficiência respiratória hipercapnica. O tratamento consiste no suporte ventilatório e treinamento muscular até a adaptação da musculatura respiratória remanescente ao trabalho respiratório excedente, e prevenção das complicações secundárias ao suporte ventilatório prolongado que possam contribuir com aumento do trabalho respiratório.

No caso apresentado acima, o trabalho respiratório deveria ser realizado pela musculatura intercostal não afetada, pelo esternocleidomastoídeo e pela musculatura abdominal. A avaliação da pressão inspiratória máxima revelou uma diminuição importante de força da musculatura respiratória remanescente, com valores maiores que ¾ 30 cmH2O, preditivos de falência de desmame do ventilador mecânico (11,12). Todavia, nenhum índice preditivo de desmame é validado em pacientes com paralisia frênica. Em vista da diminuição da força muscular, o tratamento da paciente foi direcionado para a diminuição do trabalho respiratório. Parte do tratamento baseia-se no suporte nutricional. Os lipídios devem ser preferidos e passam a ser 40 % das calorias não protéicas, com intuito de diminuir-se a produção de CO2. Avaliações dos níveis séricos de fósforo, magnésio e cálcio foram realizadas a cada 3 dias durante a sua permanência na Unidade de Terapia Intensiva, para prevenir a fadiga muscular induzida por distúrbios hidroeletrolíticos (13-15). Os quadros de traqueobronquites e pneumonias associadas à ventilação mecânica foram tratados precocemente para prevenir aumento do trabalho respiratório secundário à hipersecreção pulmonar. O balanço hídrico foi mantido negativo para diminuir o trabalho respiratório secundário à congestão pulmonar e realizado treinamento intensivo da musculatura respiratória remanescente com resistores de carga linear com intuito de aumentar o limiar de fadiga.

É importante ressaltar a utilização de ventilação com pressão negativa através de colete torácico. Esta modalidade ventilatória propicia condições para recuperação da função muscular, sem os riscos inerentes à ventilação por pressão positiva (16), porém a paciente não conseguiu adaptar-se ao método. Após 94 dias na UTI, foi possível descontinuar o suporte ventilatório, sugerindo que a musculatura respiratória remanescente adaptou-se ao trabalho respiratório excedente. Outras possibilidades terapêuticas têm sido empregadas em pacientes adultos com paralisia frênica bilateral como plicatura diafragmática e estimulação elétrica do músculo (17,18), contudo, a nossa experiência com estas técnicas é pequena.

Em conclusão, neste relato, descrevemos um caso de associação de paralisia diafragmática e paralisia da cintura escapular no pós-operatório de operação após correção de aneurisma de aorta ascendente. Não foi observado durante a pesquisa de literatura qualquer caso semelhante. A disfunção diafragmática associada à paralisia da cintura escapular determina uma forma grave insuficiência respiratória, de difícil tratamento, cujo sucesso depende da adaptação da musculatura remanescente à sobrecarga de trabalho respiratório.

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Article receive on segunda-feira, 1 de janeiro de 2001

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