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ARTIGO ORIGINAL

Cardioplegia sangüínea normotérmica intermitente anterógrada: estudo experimental em coelhos

Alfredo José Rodrigues0; Albert Amin Sader0; Walter V. A Vicente0; Solange Bassetto0

DOI: 10.1590/S0102-76381997000300012

INTRODUÇÃO

A hipotermia, introduzida experimentalmente em cirurgia cardíaca em 1954 por BIGELOW et al. (1), com contribuições posteriores de SHUMWAY et al. (2) e SHUMWAY & LOWER (3), tornou-se um recurso importante e de uso quase universal, tanto em circulação extracorpórea como na proteção miocárdica em cirurgia cardíaca, associada ou não à cardioplegia (4-7). Embora seu uso esteja consagrado na proteção miocárdica, durante períodos mais ou menos longos de isquemia, ela não é isenta de efeitos nocivos. Várias publicações têm relatado desvantagens da hipotermia, quer seja de superfície ou em soluções cardioplégicas, sobretudo quando se procura atingir temperaturas miocárdicas abaixo ou ao redor dos 10°C (8-10). LICHTENSTEIN et al. (11, 12) propuseram, então, a utilização de infusão contínua de solução cardioplégica sangüínea em normotermia, com bons resultados clínicos (11-13).

Nesta técnica, as interrupções na infusão contínua de cardioplegia sangüínea normotérmica, por vezes necessárias, durante as operações de revascularizações do miocárdio, Ihe conferem um caráter de intermitência, embora estas interrupções não ultrapassem 10 a 15 minutos (14-16).

A utilização de solução cardioplégica sangüínea em normotermia (37°C), infundida de forma intermitente, poderia ter todas as vantagens da infusão contínua aliada a simplificação e redução de custos, já que não necessita de equipamento especial; outra vantagem da infusão intermitente é a de evitar a sobrecarga hídrica e a hipercalemia.

Os intervalos de infusão poderiam ser ampliados com base nos seguintes fatos: 1) a indução da assistolia dá-se de forma aeróbia; 2) o coração permanece em assistolia durante os intervalos da infusão; 3) a reinfusão periódica de solução sangüínea oxigenada restabeleceria as reservas energéticas e removeria os metabólitos nocivos resultantes do metabolismo anaeróbio.

Com base nestas considerações propôs-se o estudo experimental, cujo objetivo é: verificar o grau de proteção miocárdica proporcionada pela infusão intermitente a cada 20 minutos, durante 60 minutos, de solução cardioplégica sangüínea hipercalêmica a 37°C, em corações isolados de coelhos.

MATERIAL E MÉTODOS

1 Os Animais

Usaram-se coelhos da raça Nova Zelândia, machos, com peso variável entre 2 e 3 kg. Os animais foram denominados: doadores (n = 32), receptores (9) e doadores de sangue (17).

Doador é o animal do qual se retirou o coração para o estudo experimental; receptor é o coelho conectado ao aparelho para perfusão parabiótica; doador de sangue é o animal cujo sangue serviu para o preparo das soluções cardioplégicas e para transfusões no coelho receptor.

2 Anestesia

Todos os animais foram anestesiados com pentobarbital sódico, na dose de 30 mg/kg de peso corpóreo, injetado por via endovenosa. Instituiu-se ventilação mecânica controlada, ciclada a pressão (respirador Takaoka, modelo 600) a 30 ciclos/min, e O2 a 100%, mediante entubação traqueal através de traqueotomia cervical.

3 Procedimento Cirúrgico

Coelho doador: para a retirada do coração, procedeu-se a esternotomia e cervicotomia mediana, ressecção do timo, dissecção da aorta e seus ramos, todos enlaçados com fios de algodão. Através de uma das artérias carótidas, canulou-se a aorta ascendente com cateter ("Intracath") calibre 16 ga, por meio do qual se infundiu a solução cardioplégica, após a ligadura distal da croça. Ambas as aurículas foram abertas para evitar distensão do coração parado. Seccionando-se as veias cavas, a aorta e seus ramos, o tronco pulmonar e as veias pulmonares, o coração pôde ser removido.

Coelho receptor: por cervicotomia, dissecou-se uma artéria carótida, comum e uma veia jugular interna. Após a heparinização, ambos os vasos foram canulados: a artéria com "Intracath" 16 ga, introduzido até junto da aorta, e a veia com tubo de Polietileno PE 240. O cateter arterial conectado à bomba de rolete e o venoso à linha de drenagem venosa, ambos componentes do aparelho de reperfusão (Figura 1).


Fig. 1 - Esquema do aparelho de perfusão parabiótica. O sangue aspirado da artéria carótida comum do coelho receptor é levado ao reservatório arterial e perfunde retrogradamente a aórta do coração do doador, através da linha de perfusão aórtica. O sangue proveniente do seio coronário do coração em estudo e o excedente do nível, pré-estabelecido, do reservatório arterial são coletados no frasco coletor e reinfundidos ao receptor pela veia jugular interna. A pressão de perfusão é constante e determinada pelo tamanho da coluna de perfusato tomada a partir do nível do reservatório arterial até a extremidade distal da linha de perfusão aórtica.

Coelho doador de sangue: mediante laparotomia mediana, as vísceras abdominais móveis eram exteriorizadas e envolvidas com gases embebidas em solução de NaCl a 0,9%, a 37°C. A aorta infra-renal era dissecada e, após a heparinização, laqueada caudalmente e canulada cranialmente com "Intracath" 16 ga. Através dessa cânula, aspirava-se aguda e rapidamente todo o sangue necessário para o preparo da solução cardioplégica. O sangue remanescente, cerca de 50 ml, era retirado para transfusão no receptor. A sangria aguda visava evitar hemodiluição e acidose por hipovolemia.

Todos os animais receberam 3 mg/kg de heparina, endovenosamente, no final do preparo cirúrgico e antes das canulações vasculares.

4 Solução Cardioplégica

A composição da solução cardioplégica encontra-se na Tabela 1.



5 Sistema de Reperfusão

O sistema de reperfusão proposto por CHEN et al. (17), com algumas modificações, encontra-se esquematizado na Figura 1.

6 Funcionamento do Sistema de Reperfusão

O sistema era preenchido com 100 ml de solução de Ringer, ao qual se acrescentavam 15 mg de heparina sódica e 3 mEq de bicarbonato de sódio. Antes do início da perfusão, 50 ml de sangue arterial eram misturados no reservatório com a solução de Ringer. Um volume equivalente de sangue era transfundido ao receptor para evitar distúrbios hemodinâmicos. A temperatura do perfusato era mantida constante pela circulação de água a 37°C entre as paredes interna e externa do reservatório arterial e do frasco coletor.

Durante o período de isquemia, os corações recebiam uma cânula na aorta, 2 fios de marcapasso epicárdico e um cateter com balão de látex em uma de suas extremidades era introduzido, colapsado, na cavidade ventricular esquerda através da valva mitral. O anel mitral era suturado ao redor do cateter para evitar sua extrusão durante as contrações ventriculares.

A reperfusão era realizada em dois corações, simultaneamente. Cinco minutos após o reinicio espontâneo da atividade mecânica, iniciava-se a estimulação elétrica na freqüência de 180 pulsos por minuto, com amplitude de 20 mV e, só então, iniciava-se o registro das pressões intraventriculares.

Ao final do período de reperfusão, preestabelecido em 20 minutos, os ventrículos eram excisados ao nível do sulco atrioventricular e imersos em solução de NaCl 0,9% gelada, contida em Beckers envoltos por gelo picado e, assim, encaminhados para processamento e análise bioquímica.

7 Obtenção e Análise das Pressões Intraventriculares Esquerdas

7.1 Registro das pressões intraventriculares esquerdas

As curvas de pressão foram registradas em polígrafo "Physiograph MK-IV", de 4 canais, da Narco Bio Systems Inc. (Houston, Texas, USA). Os registros de ambos os corações foram tomados simultaneamente, em canais diferentes, tendo a mesma calibração elétrica e com manômetro de mercúrio, com escala de 0 a 200 mmHg (50 mmHg/cm). Utilizou-se um transdutor de pressão modelo 7179 com 8 microvolts/cm de sensibilidade (Narco Bio Systems Inc., Houston, Texas, USA).

7.2 Cálculo manual da derivada pressão/tempo-dP/dtmax

O cálculo da dP/dt do ventrículo esquerdo foi realizado manualmente, segundo o método proposto por ALOAN (18), a partir do traçado das pressões intraventriculares, 10, 15 e 20 min após o início da reperfusão, calculando-se a média das três medidas.

8 Estudo Metabólico

O estudo metabólico do miocárdio ventricular constou de:

8.1 Dosagem do glicogênio

A extração do glicogênio foi realizada pelo método proposto por SJOGREEN et al. (19), a partir de 500 mg de músculo cardíaco, obtidos seccionando-se a ponta do coração. A dosagem foi realizada pelo método proposto por HASSID & ABRAHAN (20).

8.2 Respiração mitocondrial

Determinou-se a Razão de Controle Respiratório (RCR), definida como a relação entre a velocidade de consumo de oxigênio no Estado III (fase ativa da fosforilação oxidativa com consumo de oxigênio e formação de ATP) e o Estado IV (respiração basal após todo o ADP ser fosforilado à ATP). A relação ADP: O2 é dada pela quantidade de oxigênio necessário para a fosforilação total de uma quantidade conhecida de ADP. Esta relação dá uma idéia do acoplamento entre fosforilação e oxidação biológica na cadeia respiratória.

Obteve-se a fração mitocondrial pela técnica de SORDHAL et al. (21), e a determinação do consumo de oxigênio mitocondrial foi realizada polarograficamente, a 30°C, mediante a utilização de um oxígrafo modelo Gilson 5/6 Oxygraph (Gilson Medical Eletronics, Inc., W. Beltline Middeton, WI, USA) munido de um eletrodo para oxigênio tipo Clark.

As mitocôndrias eram agitadas e colocadas na câmara de modo a obter-se 1 mg de proteína mitocondrial por ml do meio de respiração. A proteína mitocondrial foi determinada pelo método LOWRY et al. (22). O substrato oxidável utilizado foi o alfa-cetoglutarato (Sigma Chemical Company, St Louis, MO, USA), em forma de sal potássico na concentração de 5mM. O estímulo para a captação do oxigênio (Estado III da respiração) foi induzido pela adição de 400 nmoles de MgADP (Sigma Chemical Company, St Louis, MO, USA).

Os parâmetros da fosforilação oxidativa foram calculados de acordo com CHANCE & WILLIAMS (23) e ESTABROOK & PULLMAN (24) e foram expressos em nanoátomos de oxigênio utilizados por mg de proteína por minuto, para os Estados III e IV da respiração mitocondrial.

9 Delineamento do Projeto

O estudo foi dividido em duas fases:

Fase I: Estudo metabólico após isquemia sem reperfusão

Fase II: Estudo funcional e metabólico após reperfusão

Fase I: Estudo metabólico após isquemia sem reperfusão

Nesta fase foram comparados os níveis de glicogênio e a respiração mitocondrial do miocárdio de 15 corações submetidos, durante 60 minutos, a infusão intermitente de solução cardioplégica sangüínea a 37°C. O tempo de infusão era de cerca de 2 minutos, com intervalo entre cada infusão de 20 minutos. Os corações foram divididos em grupos Experimental (10 corações) e Controle (5 corações).

Fase II: Estudo metabólico e funcional após reperfusão

Nesta fase foram estudados 17 corações. O Grupo Experimental (10 corações) recebeu o mesmo tratamento dos grupos da fase I, até ao final do período de 60 minutos de infusão intermitente da solução cardioplégica. Durante esse período os corações eram preparados para reperfusão. No Grupo Controle (7 corações) a reperfusão seguiu-se 5 a 7 minutos após a infusão da primeira dose de cardioplegia, tempo necessário para o preparo para a reperfusão, durante o qual os corações foram mantidos em solução de NaCI a 0,9% a 4°C.

10 Análise Estatística

A comparação dos resultados foi realizada pelo teste T de Student, com nível de significância de 0,01. Os resultados foram expressos como média aritmética dos valores ± o erro padrão da média. Não foram feitas comparações entre os grupos com e sem reperfusão, pois são grupos distintos, com diferentes particularidades técnicas, como o curto período de isquemia antes da reperfusão, necessário para a montagem dos corações no aparelho de perfusão.

RESULTADOS

1 Glicogênio Miocárdico

Na Tabela 2 encontram-se os valores de glicogênio miocárdico em cada grupo nas fases sem reperfusão (Fase I) e com reperfusão (Fase II) e seus respectivos controles. A análise dos resultados ao final dos 60 minutos, sem reperfusão (Fase I), mostra uma queda dos níveis de glicogênio miocárdico de 58% em relação ao controle. Esta diferença foi estatisticamente significativa. Na fase com reperfusão (Fase II), embora os níveis de glicogênio fossem menores em relação ao respectivo controle, a diferença não foi significativa.



2 Respiração Mitocondrial

Os resultados dos parâmetros da respiração mitocondrial (Estados III e IV, RCR e ADP/O2) encontram-se na Tabela 3 para os grupos sem reperfusão (Fase I) e com reperfusão (Fase II). As diferenças observadas não foram significativas.



3 Função Ventricular Esquerda-dP/dtmax

Os valores da dP/dtmax ,medidas durante a fase com reperfusão, foram de 1,043 ± 256,94 mmHg/s e 903,39 ± 113,46 mmHg/s para os grupos Controle e Experimental, respectivamente. Embora haja redução de 13% em relação ao controle, esta diferença não atingiu significância estatística.

4 Peso dos Ventrículos

O peso dos ventrículos dos corações estudados variou de 3,85g a 4,89g, e a diferença entre as médias de cada grupo não foram significativas. A comparação entre o peso dos ventrículos torna-se importante devido ao fato de que foi utilizada a mesma dose de cardioplegia para todos os corações e qualquer diferença no peso poderia representar uma dose insuficiente em ventrículos com maior massa.

COMENTÁRIOS

Quando o fluxo coronário é intensamente deprimido, além da redução proporcional na oferta de glicose exógena, há inibição da atividade enzimática da via glicolítica (glicólise e glicogenólise), decorrente, sobretudo, do acúmulo de lactato e queda do pH intracelular (25-28).

Segundo OPIE (28), atualmente está bem estabelecida a "Compartimentalização física do ATP" entre as mitocôndrias e o citoplasma. Na compartimentalização funcional (28, 29) o ATP produzido a partir da glicólise seria preferencialmente utilizado para manter integridade e função da membrana celular, sobretudo dos canais de potássio. O ATP gerado a partir do metabolismo oxidativo mitocondrial seria utilizado preferencialmente para suportar a função contrátil.

Nesta investigação, a assistolia foi induzida por infusão de solução cardioplégica sangüínea normotérmica, portanto, aerobiamente. Desta forma, as reservas energéticas, sobretudo o glicogênio, são mantidas, ao contrario do que ocorreria caso a assistolia fosse induzida por isquemia ou solução cardioplégica não oxigenada. Assim, o miocárdio pode suportar o período de isquemia que se segue, sustentado pela glicólise anaeróbia. As infusões periódicas servem não apenas para reoxigenar e recompor as perdas de substratos consumidos durante a isquemia, mas também para remover os produtos nocivos do metabolismo isquêmico, particularmente os radicais ácidos. Embora a acidose intracelular seja considerada prejudicial, segundo ROUSLIN (30) ela reduziria a hidrólise do ATP em ADP e fosfato inorgânico, pela ATPase mitocondrial.

Os resultados dos níveis de glicogênio miocárdico permitem especular que as reservas se mantiveram parcialmente em decorrência da indução de assistolia antes do período de isquemia e do fornecimento intermitente de oxigênio e glicose. Outra possibilidade seria o bloqueio da glicólise e glicogenólise durante os períodos de isquemia, devido ao acúmulo de metabólitos do metabolismo anaeróbio, sobretudo lactato e radicas ácidos, impedindo o consumo de glicogênio. Todavia, parece que a primeira hipótese é mais provável. Nossos resultados mostraram excelente recuperação funcional de todos os corações; apenas dois corações foram descartados do estudo, devido a fibrilação ventricular na reperfusão, mas em ambos ficou evidente a embolia aérea nas artérias coronárias. Os resultados estão de acordo com o exposto previamente acerca do papel do ATP produzido pela glicólise.

Convém ressaltar, ainda, que APSTEIN et al. (31) observaram contratura isquêmica grave e persistente, aumento no limiar de estimulação com marcapasso e pobre recuperação funcional, quando a glicólise era bloqueada com iodoacetato em corações submetidos a apenas 3 minutos de isquemia em normotermia.

É importante lembrar que as nossas dosagens não foram realizadas nos mesmos corações antes e após a reperfusão, de tal forma que se pode apenas afirmar que, ao final dos 60 minutos de infusão intermitente, os níveis de glicogênio nos grupos com reperfusão foram semelhantes aos do grupo sem reperfusão, expostos às mesmas condições experimentais, e que a reperfusão permitiu recuperação parcial dos níveis de glicogênio miocárdico. Os menores níveis de glicogênio nos corações do grupo com reperfusão em relação aos grupos sem reperfusão podem ser explicados pelo fato de que ao final do período de reperfusão os ventrículos eram excisados e imersos em solução salina gelada, ainda em atividade eletromecânica. Decorreram alguns segundos até que acorresse assistolia induzida pela isquemia e hipotermia, consumindo, dessa forma, algum glicogênio.

Não há consenso quanto ao marcador bioquímico que melhor se correlacione com as alterações funcionais e tenha valor preditivo quanto à recuperação funcional após isquemia miocárdica. Alguns autores observaram que a redução no consumo de oxigênio miocárdico (32, 33), e/ou a capacidade mitocondrial em gerar ATP (34), estavam diretamente relacionados com a recuperação funcional miocárdica, após isquemia, embora outros não observassem tais correlações (35, 36). Talvez esta discordância possa ser atribuída às diferenças metodológicas em cada trabalho, sobretudo quanto aos modelos experimentais, protocolos de isquemia e proteção miocárdica e métodos de obtenção da fração mitocondrial.

Nossos resultados mostram uma redução discreta do consumo de oxigênio no Estado III da respiração mitocondrial do miocárdio isquêmico na fase sem reperfusão, embora não atingissem significância estatística. Na fase com reperfusão, os valores foram semelhantes aos dos controles e as diferenças também não apresentaram significância estatística. O mesmo foi encontrado com relação aos demais índices da respiração mitocondrial, sobretudo a RCR, tida como o melhor indicador da função mitocondrial.

Deve-se, porém, considerar que a técnica de obtenção da fração mitocondrial por nós utilizada é muito traumática, como mostraram SCHLAFER et al. (37). Os valores obtidos podem corresponder apenas à pequena proporção das mitocôndrias que puderam suportar o processo de isolamento, geralmente as que se encontram em melhor estado, subestimando os efeitos da isquemia sobre a função mitocondrial. Desta forma, os valores obtidos sugerem que a infusão, a cada 20 minutos, de solução cardioplégica sangüínea normotérmica, nessas condições experimentais, foi eficaz em preservar a função mitocondrial.

Com relação à recuperação funcional, os resultados demonstraram que esta técnica de proteção miocárdica também foi eficaz em preservar a função ventricular esquerda. Deve-se levar em consideração as observações de SAKS et al. (35) de que o comprometimento de outros sistemas subcelulares, e não apenas o mitocondrial, sejam os responsáveis pela deterioração da função ventricular após isquemia. Novamente, são pertinentes as observações de SCHLAFER et al. (37), a cerca do processo traumático de obtenção da fração mitocondrial, o que pode explicar uma falta de correlação entre a função mitocondrial e a recuperação funcional do ventrículo esquerdo, após isquemia.

Não obstante o fato de que o uso de cardioplegia sangüínea normotérmica com infusão contínua venha ganhando popularidade, deve-se salientar que a proposição original de LICHTENSTEIN et al. (11, 12) baseou-se, apenas, em considerações teóricas, sem fundamentação experimental. Desta forma, há várias questões à espera de elucidação. Uma, que tem preocupado alguns investigadores, é o período de tempo durante o qual o miocárdio pode suportar as interrupções da infusão cardioplégica contínua normotérmica.

Trabalhos experimentais (38-40) têm demonstrado que tais interrupções são nocivas ao miocárdio. Todavia, trabalhos clínicos (14-16) têm demonstrado que a infusão intermitente de solução cardioplégica sangüínea, em normotermia, tem a mesma eficácia (16) ou é superior (14, 15) à infusão intermitente da mesma solução cardioplégica em hipotermia. Novamente devemos considerar as diferenças metodológicas para explicar tais contradições.

Convém lembrar que, na literatura citada, os intervalos entre as infusões da solução cardioplégica sangüínea normotérmica intermitente, ou a interrupção de sua infusão contínua, nunca foram superiores a 15 minutos. Na presente investigação, a infusão de cada dose foi feita a intervalos de 20 minutos. Desta forma, durante os 60 minutos de assistolia, os corações permaneceram isquêmicos por 52 minutos, ou seja, 86,6% do tempo, sem aparentes conseqüências metabólicas e/ou funcionais. Entretanto, deve-se considerar que os experimentos foram realizados em corações normais de coelhos. Tais resultados podem ser diferentes em corações humanos doentes, sobretudo nos portadores de coronariopatia obstrutiva e/ou hipertrofia miocárdica, principalmente se submetidos a tempos maiores de isquemia.

CONCLUSÕES

A infusão anterógrada intermitente a cada 20 minutos, durante 60 minutos, de solução cardioplégica sangüínea a 37oC, foi eficaz em preservar a função mitocondrial e a função ventricular esquerda e resultou em preservação parcial das reservas de glicogênio miocárdico; foi método eficaz de proteção miocárdica em corações normais de coelhos.

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Discussão

DR. ANTÔNIO JAZBIK

Rio de Janeiro, RJ

Gostaria de cumprimentar o grupo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), na pessoa do Prof. Alfredo José Rodrigues, pelo trabalho apresentado. A meu ver, todo trabalho experimental, por si só, já merece algum tipo de elogio; no caso presente, me parece de grande interesse prático. Minhas principais observações dizem respeito à transferência desses resultados para corações humanos, uma vez que os mesmos foram obtidos em corações de coelhos, Gostaria que o autor comentasse acerca de aplicabilidade clínica e das alterações no glicogênio miocárdico, uma vez que estas alterações foram significativas. No mais, queremos parabenizar os autores pelo trabalho apresentado e desejar que nos tragam novos subsídios nos próximos congressos.

DR. RODRIGUES

(Encerrando)

Agradecemos os comentários realizados pelo Dr. Jazbik e que valorizam nosso trabalho. Atualmente, estamos na fase final da elaboração de um projeto de pesquisa visando comparar, prospectivamente, a infusão intermitente anterógrada de solução cardioplégica sangüínea normotérmica com a hipotérmica, em pacientes adultos, submetidos a cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea. Realizamos um pequeno estudo piloto com pacientes valvopatas e coronarianos selecionados, submetidos a cirurgia eletiva e com boa função ventricular esquerda. Neste pequeno grupo não observamos mortes ou complicações pós-operatórias. Quanto à concentração de glicogênio miocárdico, é esperado que ocorra queda dos seus níveis durante o período de isquemia, sobretudo em normotermia, visto ser esta a principal fonte de substrato energético nesta situação. Entretanto, devemos nos ater ao fato de que, na isquemia normotérmica, sem a indução aeróbia prévia de assistolia, há o consumo quase total da reserva energética do miocárdio, sobretudo do glicogênio, logo nos primeiros minutos de isquemia. Quando induzimos aerobicamente a assistolia, antes do período de isquemia, permitimos que o miocárdio enfrente este período com suas reservas energéticas plenas. Desta forma, o miocárdio estará mais apto a suportar períodos maiores de isquemia normotérmica, sem lesão. Na técnica que empregamos, cada reinfusão reoxigena e fornece substratos, ajudando a recompor as reservas energéticas, tanto que pudemos observar preservação parcial dos níveis de glicogênio miocárdico.

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