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ARTIGO ORIGINAL

A síndrome do coração esquerdo hipoplásico não constitui fator de risco para operação de Fontan

Artur Henrique de SouzaI; Luciana da FonsecaI; Sônia Meiken FranchiII; Alessandro Cavalcante LianzaIII; José Francisco BaumgratzI; José Pedro da SilvaIV

DOI: 10.1590/S0102-76382010000400014

RESUMO

Objetivo: Demonstrar a mortalidade hospitalar de crianças submetidas à operação de Fontan e determinar se a síndrome do coração esquerdo hipoplásico (SCEH) constitui fator de risco para mortalidade. Métodos: De agosto 2001 a junho 2008, 76 pacientes foram submetidos à operação de Fontan, sendo divididos em dois grupos: grupo A com 54 pacientes, sendo 31 (40,7%) portadores de atresia tricúspide e variantes, seis (7,8%) de dupla via de entrada ventrículo esquerdo, quatro (5,3%) de defeito do septo atrioventricular total e 13 (17,1%) de outras cardiopatias congênitas complexas; e grupo B constituído por portadores de SCEH, num total de 22 (28,9%) pacientes. Resultados: Os pacientes do grupo A tiveram média de idade de 6,47 anos ± 4,83 e do grupo B de 2,08 anos ± 0,24 P<0,001; a média de peso foi de 22,42 ± 11,04 contra 12,99 ± 1,2 P=0,016; o tempo médio de CEC foi de 119,5 min contra 113,3 min P=0,0, com tempo médio de pinçamento aórtico de 74,8 min e 73,5 min P= 0,75. O tempo médio de permanência em UTI foi 4,1 dias para o grupo A contra 7,52 dias para o grupo B P= 0,0003. No total (grupo A + B), três pacientes foram a óbito, com mortalidade hospitalar de 3,9%, sendo um paciente portador de SHCE (1,3%) (P<0,001; IC95% 0,001 - 0,228). Conclusão: Nosso estudo evidencia que, apesar de maior morbidade, a SCEH não constitui um fator de risco para mortalidade hospitalar.

ABSTRACT

Objective: To show the mortality rate of children undergoing to Fontan operation and determine whether the hypoplastic left heart syndrome (HLHS) is a risk factor for hospital mortality. Methods: From August 2001 to June 2008, 76 patients underwent Fontan operation and were divided into two groups: group A with 54 patients, 31 (40.7%) patients with tricuspid atresia and variants, six (7.8%) of double-inlet left ventricle, four (5.3%) and atrioventricular septal defect and total 13 (17.1%) of other complex congenital heart disease and group B all patients with HLHS a total of 22 (28.9%) patients. Results: Group A patients had a mean age of 6.47 years ± 4.83 and group B of 2.08 years ± 0.24 P <0.001, the average weight was 22.42 ± 11.04 against 12.99 ± 1.2 P = 0.016, the mean CPB time was 119.5 min versus 113.3 min P = 0.0, with a mean clamping time of 74.8 min and 73.5 min p = 0.75. The mean ICU stay was 4.1 days for group A versus 7.52 days for group B p = 0.0003. In total (group A + B) three patients died, with hospital mortality of 3.9%, and one patient with HLHS (4.54%) (P <0.001, 95% CI 0.001 to 0.228). Conclusion: Our study shows that despite higher morbidity in HLHS is not a risk factor for hospital mortality.
INTRODUÇÃO

Após a introdução do conceito de anastomose cavopulmonar total em 1971, por Fontan e Baudet [1], para o tratamento de crianças com ventrículo funcional único, grandes modificações ocorreram nos últimos anos, pelas técnicas cirúrgicas, indicações e manuseio pós-operatório. Algumas mudanças, como o estagiamento cirúrgico das cardiopatias, fenestração do conduto, túnel lateral, Fontan extracardíaco, bem como a melhoria do pré e do pós-operatório, seja pela evolução dos métodos diagnósticos, seja pela introdução de novas drogas, fizeram com que a morbidade e a mortalidade da operação de Fontan diminuíssem drasticamente nesses anos.

Entretanto, apesar desta grande evolução, alguns estudos sugerem que a Síndrome do coração esquerdo hipoplásico (SCEH) constitui um fator de risco para mortalidade de crianças submetidas à operação de Fontan [2] e outros demonstram não haver aumento de mortalidade [3]. Portanto, a proposta deste trabalho é avaliar a mortalidade hospitalar da operação de Fontan e determinar se a SCEH constitui fator de risco.


MÉTODOS

Foram avaliados por meio de levantamento de prontuários todos os casos de pacientes submetidos a operação de Fontan, entre agosto de 2001 e junho de 2008, pela equipe cardio-cirúrgica Dr. José Pedro da Silva do Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo. O protocolo utilizado para este trabalho foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da instituição (n° 0007036000008).

Foram incluídos no grupo A todos os pacientes submetidos à operação de Fontan, exceto os portadores de SCEH, e no grupo B, todos os pacientes submetidos à operação de Fontan portadores de SCEH. Quanto ao diagnóstico, 22 (28,9%) pacientes eram portadores de SCEH, 31 (40,7%) de atresia tricúspide e suas variantes, seis (7,8%) de dupla via de entrada de ventrículo esquerdo, quatro (5,3%) de defeito do septo atrioventricular total complexo e os 13 (17,1%) restantes de outras cardiopatias congênitas complexas. Foram analisadas entre os grupos A e B, além da mortalidade, as seguintes variáveis: peso, idade, sexo, tempo de circulação extracorpórea (CEC), tempo de pinçamento aórtico e tempo de permanência na UTI. Para a verificação da associação entre os sucessos e os óbitos hospitalares por SCEH foi utilizado o teste exato de Fisher, com P<0,05 e o intervalo de confiança de 95%.

Técnica operatória

Todos pacientes foram operados utilizando CEC convencional com oxigenador de membrana, com inserção de cânula arterial em aorta ascendente distal e canulação bicaval para retorno venoso, sob hipotermia sistêmica moderada (25°C) e realizada proteção miocárdica com cardioplegia sanguínea gelada por via anterógrada. Em todos os casos, foi realizada ultrafiltração durante a CEC. A técnica operatória utilizada para realização da operação de Fontan foi túnel lateral intracardíaco em 25 (32,8%) pacientes, tubo extracardíaco em sete (9,2%) e tubo extracardíaco composto em 44 (57,8%). O tubo extracardíaco composto foi construído utilizando lenço de PTFE (politetrafluoroetileno) fenestrado para construção da parede medial e pericárdio autólogo in situ em sua parede lateral, o que pode propiciar o crescimento do tubo, acompanhando o desenvolvimento da criança.


RESULTADOS

Dos 76 pacientes submetidos à operação de Fontan, três pacientes foram a óbito, com mortalidade hospitalar de 3,9%, sendo um (4,54%) paciente portador de SCEH. Os resultados encontram-se na Tabela 1.




Não houve diferença significante entre os tempos de CEC e pinçamento aórtico entre os grupos.

A idade e peso foram significativamente menores no grupo B, o que pode ter contribuído para maior permanência em UTI nesse grupo de pacientes.


DISCUSSÃO

A evolução do manuseio dos neonatos com ventrículo único nos últimos anos aumentou o número de pacientes elegíveis à operação de Fontan. Este avanço se deve, em parte, ao grande desenvolvimento dos métodos diagnósticos, principalmente à ecocardiografia, que possibilitou o diagnóstico precoce de várias cardiopatias e, consequentemente, sua intervenção imediata, aliado obviamente às técnicas cirúrgicas adequadas para manutenção adequada do fluxo pulmonar. Além disso, a introdução da prostaglandina e sua fundamental utilização nas cardiopatias cianogênicas permitiram que neonatos pudessem ser operados eletivamente, evitando assim em grande parte os transtornos de cirurgias emergenciais.

Grandes avanços ocorreram, também com a operação de Fontan, com uma variedade de modificações técnicas [1-4], incluindo o estagiamento cirúrgico entre a anastomose cavopulmonar parcial bidirecional (Glenn) e a anastomose cavopulmonar total [5,6]; a criação de um túnel lateral intra-atrial [7], de shunt direita-esquerda através de uma fenestração do conduto ou patch intra-atrial [8-10] e a criação de um conduto extracardíaco [10]. Mais recentemente, alguns estudos demonstram que a ultrafiltração seria outro aditivo para melhoria dos resultados. Dessa forma, a morbidade e a mortalidade das crianças submetidas à operação de Fontan diminuíram drasticamente nos últimos anos, influenciando também neste resultado a melhoria da CEC, do manuseio anestésico e os cuidados de UTI.

Gentles et al. [11], do Children's Hospital de Boston, publicaram estudo de revisão entre 1973 a 1991, onde 500 crianças foram submetidas à operação de Fontan. Neste estudo, verificou-se que pressão arterial média pulmonar alta, crianças muito novas, presença de síndrome heterotáxica e a válvula atrioventricular sistêmica como sendo a tricúspide foram identificados como fatores de risco para falha da operação. SHCE ocorreu em menos de 10% dos casos e foi identificado como fator de risco para insucesso.

Van Arsdell et al. [12], da Universidade de Toronto, publicaram estudo com 100 operações de Fontan consecutivas entre 1991 e 1995. A mortalidade dos primeiros 50 pacientes operados foi de 16% contra 0%, nos últimos 50. Eles concluíram que, apesar das características e fatores de risco dos pacientes serem iguais, algumas inovações como Fontan extracardíaco e ultrafiltração modificada após a CEC diminuíram consideravelmente a mortalidade dos pacientes das cirurgias mais recentes.

Mosca et al. [13], da Universidade de Michigan, publicaram no ano de 2000 estudo com 100 pacientes submetidos à operação de Fontan entre 1992 a 1998. Todos os pacientes eram portadores de SCEH, sendo empregadas duas técnicas cirúrgicas diferentes neste grupo. Nos últimos 5 anos de revisão, mostraram resultado excelente, com sucesso cirúrgico de 98%, creditado à utilização de ultrafiltração modificada e também à introdução da fenestração do túnel lateral intra-atrial.

Koutlas et al. [14], do Children´s Hospital da Philadelphia, publicaram bons resultados na operação de Fontan após a utilização de ultrafiltração modificada, concluindo que este procedimento contribui para a melhora dos resultados cirúrgicos. Vários centros de referência reportaram grande melhora hemodinâmica dos pacientes submetidos à operação de Fontan após a introdução do shunt direita-esquerda [15,16], incluindo melhora da pré-carga, débito cardíaco, oferta de oxigênio, diminuição da pressão venosa central e diminuição dos derrames pleurais.

Tweddell et al. [17], do Children's Hospital of Wisconsin, publicaram excelentes resultados na operação de Fontan, com mortalidade em torno de 3%, num total de 256 pacientes. Foram considerados insucesso da cirurgia neste estudo: morte, necessidade de transplante cardíaco ou necessidade de se desfazer a cirurgia.

Meyer et al. [18], do Children's Hospital of Philadelphia, publicaram estudo com 160 crianças submetidas à operação de Fontan, no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2004, com uso de CEC e pinçamento aórtico, com taxa de sucesso de 98%. Dos pacientes operados, 71% eram portadores de SCEH.

Claramente, em nosso grupo, o manuseio dos pacientes portadores de ventrículo único submetidos à operação de Fontan vem evoluindo muito nos últimos anos, sendo incorporados vários destes avanços em nossos pacientes, além de grande parte deste sucesso creditado à melhoria da CEC, bem como utilização da ultrafiltração, fazendo com que se diminua o processo inflamatório da CEC. Outro fator determinante é a uniformidade de condutas no pós-operatório, com protocolos específicos para o manuseio destes pacientes, sendo que nos últimos 3 anos vem sendo diminuído também o tempo de permanência na UTI.


CONCLUSÃO

Nosso estudo mostra um número considerável de pacientes submetidos à operação de Fontan, portadores de SCEH e demonstra claramente a redução da mortalidade hospitalar nos tempos atuais, equiparando-se aos resultados de importantes centros internacionais. Além disso, evidencia que, apesar do tempo de internação em UTI ser maior na SCEH, não constitui um fator de risco para mortalidade nesta etapa do tratamento, mostrando a grande evolução no manuseio desta doença. A continuidade deste trabalho se torna então fundamental para o acompanhamento e evolução destes pacientes a médio e longo prazo, para determinar não só morbimortalidade como também a qualidade de vida desses pacientes.


REFERÊNCIAS

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Article receive on quinta-feira, 4 de março de 2010

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