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ARTIGO ORIGINAL

Idade avançada e incidência de fibrilação atrial em pós-operatório de troca valvar aórtica

Fernando Pivatto JúniorI; Guaracy Fernandes Teixeira FilhoI; João Ricardo Michelin Sant’annaII; Pablo Mondim PyI; Paulo Roberto PratesI; Ivo Abrahão NesrallaII; Renato Abdala Karam KalilII

DOI: 10.5935/1678-9741.20140010

ABREVIAÇÕES E ACRÔNIMOS

AVC: Acidente vascular cerebral

CCS: Canadian Cardiovascular Society

CRM: Cirurgia de revascularização miocárdica

FA: Fibrilação atrial

FEVE: Fração de ejeção do ventrículo esquerdo

IC: Insuficiência cardíaca

NYHA: New York Heart Association

SPSS: Statistical Package for Social Sciences

UTI: Unidade de terapia intensiva

INTRODUÇÃO

A fibrilação atrial (FA) pós-operatória é a complicação mais comum encontrada após cirurgia cardíaca [1] e está associada com aumento do risco de acidente vascular cerebral (AVC), do tempo de internação hospitalar e na unidade de terapia intensiva (UTI), dos custos da internação e da mortalidade [2]. Na maioria dos casos, converte-se espontaneamente para ritmo sinusal, não necessitando de intervenção farmacológica [3].

A FA pós-operatória ocorre em aproximadamente 30% a 40% dos pacientes submetidos à cirurgia de revascularização miocárdica (CRM) e até cerca de 60% dos pacientes submetidos a procedimento valvar concomitante [4]. A incidência dessa arritmia é dependente das definições adotadas, das características dos pacientes, do tipo de cirurgia realizada e do método de monitorização [5], e tem aumentado continuamente ao longo das últimas décadas, o que se credita ao maior percentual de idosos sendo submetidos à cirurgia cardíaca [1].

Essa arritmia ocorre tipicamente no segundo ou terceiro dia de pós-operatório, sendo que 70% dos eventos ocorrem até o quarto dia, podendo ocorrer, entretanto, em qualquer momento após a cirurgia, inclusive após a alta hospitalar. De fato, FA é a principal causa de readmissão hospitalar precoce após cirurgia cardíaca [6].

As indicações de cirurgia valvar aórtica têm aumentado em decorrência do aumento da longevidade da população. Embora se espere maior ocorrência de FA, há poucos dados especificamente sobre essa condição em octogenários e sua correlação com morbimortalidade para orientar a possível necessidade de medidas mais intensivas profiláticas desde o período pré-operatório naqueles mais idosos.

O objetivo deste trabalho foi descrever, em uma amostra de pacientes idosos, a correlação entre faixa etária e ocorrência de FA aguda após cirurgia por estenose valvar aórtica. Secundariamente, visou avaliar a influência da ocorrência de FA na incidência de AVC pós-operatório, tempo de internação e mortalidade hospitalar.

 

MÉTODOS

Estudo transversal retrospectivo incluindo pacientes com idade > 70 anos submetidos à cirurgia de troca valvar aórtica isolada no período de 2000 a 2011 por estenose aórtica ou dupla lesão aórtica com estenose predominante, incluindo reoperações. Foram excluídos pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos associados, incluindo aortoplastia ou ampliação do anel valvar, além de pacientes com endocardite ou FA no pré-operatório.

O ritmo cardíaco foi avaliado por meio de monitorização cardíaca contínua em todos os pacientes, durante um período mínimo de 72 horas (fase de UTI pós-operatória) e por exames eletrocardiográficos diários até a alta hospitalar. Eletrocardiografias adicionais foram realizadas quando os pacientes referiram palpitações, taquicardia ou angina. Foi considerado FA qualquer episódio de arritmia supraventricular cujo traçado eletrocardiográfico apresentou ondas "f" de morfologia e amplitude variáveis, com ritmo ventricular irregular.

A classificação da angina e da insuficiência cardíaca (IC) foi realizada de acordo com os critérios estabelecidos pela Canadian Cardiovascular Society (CCS) e pela New York Heart Association (NYHA), respectivamente. Tabagismo atual foi definido como fumar um ou mais cigarros por dia no último mês. A ocorrência de AVC foi definida na presença de sinais neurológicos focais ou alterações no nível de consciência por um período > 24 horas. Mortalidade hospitalar foi definida como a ocorrência de morte durante a hospitalização do paciente, independentemente da sua duração.

Os dados foram coletados diretamente a partir do prontuário dos pacientes, sendo inseridos e analisados no software Statistical Package for Social Sciences (SPSS) 21.0. A análise descritiva foi realizada a partir da distribuição de frequência absoluta e relativa, para as variáveis qualitativas, e por meio da média/mediana e desvio padrão/intervalo interquartil, para as quantitativas. A comparação dos grupos foi realizada pelo teste t de Student, para as variáveis quantitativas com distribuição normal, pelo teste U de Mann-Whitney, para as quantitativas sem distribuição normal e pelo teste do qui-quadrado para as variáveis categóricas. Em situações de baixa frequência, foi utilizado o teste exato de Fisher. A análise multivariável foi realizada por regressão logística múltipla, sendo incluídas todas as variáveis que apresentaram P<0,20 na análise univariada. Para análise multivariável das variáveis contínuas sem distribuição normal, foi feita transformação logarítmica e, em seguida, realizada análise de regressão linear múltipla, sendo utilizados os mesmos critérios de inclusão descritos anteriormente. A relação entre idade e incidência de FA aguda no pós-operatório foi avaliada através do teste de qui-quadrado para tendência linear após divisão das idades em faixas etárias de 5 anos. O nível de significância adotado em todos os testes foi de 5%. Esta é uma subanálise de um estudo prévio [7], submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IC/FUC.

 

RESULTADOS

A amostra estudada foi de 348 pacientes, que preencheram os critérios de inclusão do estudo. As características demográficas da população estudada estão descritas na Tabela 1.

 

A incidência de FA no pós-operatório foi de 32,8% (n=114), sendo superior nos pacientes com idade > 80 anos (42,9%), em comparação com aqueles da faixa 70-79 anos (28,8%), diferença significativa (P=0,017), mesmo quando ajustado para doença pulmonar obstrutiva crônica, tabagismo prévio, doença vascular periférica e fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) < 40% em análise multivariável (P=0,012) (Figura 1).

 

A relação das faixas etárias com a ocorrência de FA está presente na Figura 2, demonstrando a análise estatística significância limítrofe para tendência linear (P=0,055).

 

A análise dos pacientes que apresentaram FA no pós-operatório em relação aos que não apresentaram tal alteração do ritmo cardíaco não identificou características ou fatores de risco com significância estatística entre esses dois grupos (Tabela 2).

 

Nos pacientes com FA aguda, houve discreta maior ocorrência de AVC no pós-operatório, sem significância estatística. Por outro lado, os pacientes com essa arritmia tiveram tempo de internação na Unidade de Tratamento Intensivo e hospitalar total significativamente maior, mesmo em análise multivariável. Não houve diferença estatisticamente significativa no que se refere à mortalidade hospitalar. Essas análises estão descritas na Tabela 3.

 

DISCUSSÃO

Avaliando pacientes idosos submetidos à troca valvar aórtica, este estudo observou uma tendência quase linear da idade e da incidência de FA no pós-operatório, possuindo os indivíduos com idade > 86 anos uma taxa de 55% dessa arritmia. Além disso, verificou-se maior tempo de internação dessa população, tanto total como em UTI, não se observando maior incidência de AVC ou de mortalidade hospitalar.

As arritmias pós-operatórias possuem etiologia multifatorial, mas há sugestões de que em pós-operatório se originem, principalmente, de proteção miocárdica incompleta. Os radicais livres derivados do oxigênio e a sobrecarga de cálcio resultante da reperfusão de áreas isquêmicas são mecanismos arritmogênicos importantes que levam à reentrada transmural [8].

Alguns estudos apontam idade avançada, sexo masculino, FA prévia, IC e retirada de betabloqueador como fatores pré-operatórios associados à maior incidência dessa arritmia. Apesar de uma série de estudos evidenciar fatores de risco para a ocorrência de FA no pós-operatório de cirurgia cardíaca, um eficaz modelo preditor ainda não existe [9]. Estudo brasileiro realizado por Silva et al. [4] analisou a ocorrência de FA em 452 pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, elaborando um escore de predição para ocorrência dessa arritmia. Os fatores mais associados com FA foram pacientes com mais de 75 anos de idade, doença valvar mitral, não utilização de betabloqueador, interrupção do uso de betabloqueador e balanço hídrico positivo. A ausência de fator de risco determinou 4,6% de chance de FA pós-operatória e para um, dois e três ou mais fatores de risco, a chance foi, respectivamente, de 16,6%, 25,9% e 46,3%.

Analisando somente pacientes submetidos à troca valvar aórtica, estudo prévio evidenciou idade, história prévia de FA paroxística, > 300 batimentos supraventriculares em 24 horas e ocorrência de taquicardia supraventricular no dia anterior ao procedimento como preditores independentes de FA paroxística no pós-operatório [10]. No presente estudo, incluímos somente pacientes com estenose aórtica e não correlacionamos com betabloqueadores ou balanço hídrico, porém confirmamos a idade como fator de risco independente.

Em outras séries, igualmente, a idade avançada é considerada um preditor independente de FA no pós-operatório de cirurgia cardíaca. É descrito que essa arritmia acomete mais de 18% dos indivíduos acima de 60 anos e cerca de 50% daqueles com idade superior a 80 anos após uma CRM [3]. A literatura referencia qualquer paciente acima de 70 anos submetido à CRM como de alto risco para desenvolver FA e, além disso, sabe-se que a cada 10 anos de aumento na idade do paciente, o risco de FA no pós-operatório de cirurgia cardíaca aumenta 75% [8,11,12]. Essa associação se deve ao fato de esses indivíduos apresentarem mais comorbidades relacionadas à idade e possuírem alterações estruturais no miocárdio atrial, como distensão e fibrose, secundárias às alterações próprias do envelhecimento [3]. No presente estudo, que incluiu apenas pacientes com idade > 70 anos, além da alta taxa global de ocorrência de FA (32,8%), também houve aumento linear com a idade como mencionado, entretanto, não significativo estatisticamente.

Embora a FA pós-operatória seja frequentemente considerada um problema temporário inócuo, essa complicação é associada com aumento da mortalidade precoce e tardia [13], como demonstrado em meta-análise [14]. A alta incidência de FA no pós-operatório de cirurgia cardíaca alerta para a importância de identificação de pacientes de alto risco para o desenvolvimento dessa arritmia [8].

Apesar de os fatores de risco para FA pós-operatória serem conhecidos, em um substancial número de pacientes, analisados individualmente, nenhum fator de risco pode ser identificado. Isso justifica a importância em estabelecer medidas profiláticas a fim de reduzir a incidência dessa arritmia e, consequentemente, suas implicações clínicas ao paciente submetido à cirurgia cardíaca [3]. Vários estudos avaliaram a eficácia de intervenções profiláticas farmacológicas e não-farmacológicas na prevenção da FA pós-operatória.

Meta-análise avaliou o impacto dessas intervenções, que incluíam amiodarona, betabloqueadores, sotalol, magnésio, estimulação atrial e pericardiotomia posterior, sendo que todas essas intervenções estudadas reduziram significativamente a taxa de FA no pós-operatório de cirurgia cardíaca. Essas intervenções profiláticas reduziram o tempo de internação em aproximadamente 16 horas e os custos da hospitalização em cerca de US$ 1.250. Além disso, diminuíram a ocorrência de AVC pós-operatório, embora essa redução não tenha obtido significância estatística (OR 0,69; IC 95% 0,47-1,01) e não demonstraram efeito na mortalidade cardiovascular ou por todas as causas [2].

A administração de agentes betabloqueadores é a medida mais eficaz na profilaxia de FA [3], reduzindo significativamente a sua incidência no pós-operatório de cirurgia cardíaca (OR 0,33; IC 95% 0,26-0,43) [2]. Como rotina em nossa instituição, todos os pacientes iniciam uso dessa classe de droga no primeiro dia de pós-operatório, a menos que haja contraindicações, como instabilidade hemodinâmica.

Limitações deste estudo incluem seu caráter retrospectivo, o que pode ter influenciado na qualidade e uniformidade dos dados coletados, o fato de ter sido realizado em um único centro, o que dificulta a generalização dos dados aqui apresentados, e a relativa pequena amostra, o que pode ter influenciado, por exemplo, na não observância da relação da FA com a ocorrência de AVC e mortalidade.

 

CONCLUSÃO

Em conclusão, a incidência de FA em período pós-operatório de cirurgia para estenose valvar aórtica em pacientes idosos com idade > 70 anos apresentou-se elevada e linearmente correlacionada com o avanço da idade, chegando a atingir 55% naqueles com mais de 85 anos. Em consequência, houve aumento dos tempos de internação total e em UTI, embora não se tenha observado maior morbimortalidade nos pacientes afetados. O conhecimento desses dados é importante para evidenciar a necessidade de medidas profiláticas e de tratamento precoce dessa arritmia nesse subgrupo, visando a minimizar morbidade e tempos de internação pós-operatórios.

REFERÊNCIAS

1. Arsenault KA, Yusuf AM, Crystal E, Healey JS, Morillo CA, Nair GM, et al. Interventions for preventing post-operative atrial fibrillation in patients undergoing heart surgery. Cochrane Database Syst Rev. 2013;1:CD003611. [MedLine]

2. Ferro CR, Oliveira DC, Nunes FP, Piegas LS. Postoperative atrial fibrillation after cardiac surgery. Arq Bras Cardiol. 2009;93(1):59-63. [MedLine]

3. Valle FH, Costa AR, Pereira EM, Santos EZ, Pivatto Júnior F, Bender LP, et al. Morbidity and mortality in patients aged over 75 years undergoing surgery for aortic valve replacement. Arq Bras Cardiol. 2010;94(6):720-5. [MedLine]

4. Silva RG, Lima GG, Guerra N, Bigolin AV, Petersen LC. Risk index proposal to predict atrial fibrillation after cardiac surgery. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2010;25(2):183-9. [MedLine] Visualizar artigo

5. Geovanini GR, Alves RJ, Brito G, Miguel GA, Glauser VA, Nakiri K. Postoperative atrial fibrillation after cardiac surgery: who should receive chemoprophylaxis? Arq Bras Cardiol. 2009;92(4):326-30. [MedLine]

6. Aranki SF, Shaw DP, Adams DH, Rizzo RJ, Couper GS, VanderVliet M, et al. Predictors of atrial fibrillation after coronary artery surgery. Current trends and impact on hospital resources. Circulation. 1996;94(3):390-7. [MedLine]

7. Zaman AG, Archbold RA, Helft G, Paul EA, Curzen NP, Mills PG. Atrial fibrillation after coronary artery bypass surgery: a model for preoperative risk stratification. Circulation. 2000;101(12):1403-8. [MedLine]

8. Hogue CW Jr, Hyder ML. Atrial fibrillation after cardiac operation: risks, mechanisms, and treatment. Ann Thorac Surg. 2000;69(1):300-6. [MedLine]

9. Rho RW. The management of atrial fibrillation after cardiac surgery. Heart. 2009;95(5):422-9. [MedLine]

10. Kaw R, Hernandez AV, Masood I, Gillinov AM, Saliba W, Blackstone EH. Short- and long-term mortality associated with new-onset atrial fibrillation after coronary artery bypass grafting: a systematic review and meta-analysis. J Thorac Cardiovasc Surg. 2011;141(5):1305-12. [MedLine]

11. Orlowska-Baranowska E, Baranowski R, Michalek P, Hoffman P, Rywik T, Rawczylska-Englert I. Prediction of paroxysmal atrial fibrillation after aortic valve replacement in patients with aortic stenosis: identification of potential risk factors. J Heart Valve Dis. 2003;12(2):136-41. [MedLine]

12. Hogue CW Jr, Creswell LL, Gutterman DD, Fleisher LA; American College of Chest Physicians. Epidemiology, mechanisms, and risks: American College of Chest Physicians guidelines for the prevention and management of postoperative atrial fibrillation after cardiac surgery. Chest. 2005;128(2 Suppl):9S-16S. [MedLine]

13. Mariscalco G, Engström KG. Atrial fibrillation after cardiac surgery: risk factors and their temporal relationship in prophylactic drug strategy decision. Int J Cardiol. 2008;129(3):354-62. [MedLine]

14. Echahidi N, Pibarot P, O'Hara G, Mathieu P. Mechanisms, prevention, and treatment of atrial fibrillation after cardiac surgery. J Am Coll Cardiol. 2008;51(8):793-801. [MedLine]

Não houve suporte financeiro.

Papéis & responsabilidades dos autores

FPJ: Concepção e desenho da pesquisa; obtenção de dados; análise e interpretação dos dados; análise estatística; redação do manuscrito

GFTF: Análise e interpretação dos dados; revisão crítica do manuscrito

JRMS: Análise e interpretação dos dados; revisão crítica do manuscrito

PMP: Análise e interpretação dos dados; revisão crítica do manuscrito

PRP: Análise e interpretação dos dados; revisão crítica do manuscrito

IAN: Análise e interpretação dos dados; revisão crítica do manuscrito

RAKK: Concepção e desenho da pesquisa; análise e interpretação dos dados; análise estatística; redação do manuscrito

Article receive on quinta-feira, 26 de setembro de 2013

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