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OPINIÃO

O ensino médico e o SUS

Alexandre V. Brick

DOI: 10.5935/1678-9741.20120052

ABREVIAÇÕES E ACRÔNIMOS

CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

DCN: Diretrizes Curriculares Nacionais

SUS: Sistema Único de Saúde

UNESCO: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

A Campanha da Fraternidade de 2012 teve como tema "Fraternidade e Saúde Pública" e o lema "Que a saúde se difunda sobre a terra". O objetivo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi fazer uma reflexão sobre a realidade da saúde no Brasil e incitar a mobilização por melhorias no atendimento público e reforça a necessidade de maior atenção fraternal aos enfermos na sua busca por uma vida saudável.

Focaliza a ineficiência do Sistema Único de Saúde (SUS) em discrepância com os serviços particulares, que ainda é reforçada pelos cortes no orçamento, sujeitando o enfermo a longas filas para o atendimento, demora para a realização de exames, falta de vagas nos hospitais e de remédios.

Lembrando que a promoção da saúde não é um favor do governo, mas um direito social, a campanha conclamou os estudantes brasileiros para esse debate, pois de nada adianta a constatação da ineficiência desse serviço sem um engajamento para a promoção de melhorias, fator importante para a própria qualificação profissional dos estudantes, inclusive na implementação de uma formação interdisciplinar.

Em evidência no cenário das políticas públicas na área de saúde, a formação dos profissionais de saúde (aqui, especificamente, a formação médica) representa terreno árido pelos questionamentos e conflitos que suscita e pelas transformações que requer.

Na gestão, o difícil é fazer funcionar a escola/ universidade como um hospital ou uma orquestra. Nos hospitais, as desculpas estão nos cemitérios. Nas orquestras, a desafinação é respondida pelas vaias.

Representando espaços privilegiados de produção de conhecimento e discussão, as escolas ainda refletem e reproduzem a lógica fragmentada própria do cientificismo, deixando de potencializar o que há de mais rico no campo da educação: as relações possíveis de serem desenvolvidas entre professor e estudante que, mais tarde, revertem-se nas relações estabelecidas entre os profissionais e seus pacientes, ou entre quem cuida e quem é cuidado. Retrato, embora parcial, do descaso com a área das relações interpessoais, vem sendo expresso, entre outros resultados, nos baixos índices de resolutividade do SUS, na insatisfação dos usuários e de muitos profissionais dos serviços e na utilização de procedimentos de alto custo, muitas vezes, desnecessários.

Pode-se supor que, como garantido constitucionalmente, o SUS como ordenador de recursos humanos na área de saúde ainda se restringe à dimensão teórica. Reconhecê-lo como ordenador da formação exige profunda reestruturação nos currículos de Medicina, especificamente, a ser realizada por meio de sucessivas e permanentes inovações curriculares, orientadas pelo princípio da integralidade - noção complexa que articula concepções e práticas de saúde - e pela revisão do processo de trabalho e de gestão em saúde. Para isso, fazem-se necessárias as rupturas do paradigma biomédico, que ainda sustenta as práticas em saúde e grande parte dos currículos de Medicina no Brasil; e da concepção simplista de que "ter saúde é não ter doença", o que implica retirar o foco das ações assistencialistas e entender que o cuidado, e não mais a assistência, deve conjugar ações de prevenção de doenças, promoção da saúde, além da cura e da reabilitação - todas exigindo pluralidade de saberes - e o trabalho em equipe interdisciplinar e multiprofissional, preferencialmente em rede.

No entanto, essas ações não se fazem por si só; envolvem uma série de procedimentos e decisões que dependem do poder público, dos gestores dos serviços, da comunidade e, em especial, do aparelho formador. De que maneira, então, os cursos da área de saúde podem se organizar para formar um profissional capaz de trabalhar sob esse novo paradigma?

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) [1] para os cursos da área de saúde, homologadas em 2001 e resultantes de um processo de discussão entre representantes do governo, professores, estudantes, pró-reitores e diretores de escolas, entre outros, destinam-se a orientar a formação desses profissionais, tendo como base conhecimentos gerais e ênfase no compromisso social. Isso implica repensar o papel da escola que, até então, pouco ou quase nada dialogava com a sociedade.

Se tomadas como um patamar para inovação, essas diretrizes representam, sem dúvida, uma tarefa de vulto para as instituições de ensino superior, pelos novos elementos que introduzem, e que apontam formas de organização e gestão dos processos de ensino até então inéditos na educação de nível superior no Brasil. Propõem-se a orientar os cursos de Medicina, entre outros, para inovar seus currículos de forma que estes se articulem com as necessidades da sociedade brasileira; buscam o "diálogo" dos projetos curriculares com o contexto social do qual a universidade faz parte; objetivam orientar a formação de profissionais que sejam capazes de atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, sendo competentes para trabalhar, sobretudo, na atenção primária e com responsabilidade social. Esse é um fato novo que, diferentemente do convencionado, requer alto nível de complexidade técnica.

No entanto, há um longo caminho a percorrer, no qual as universidades exercem papel relevante como um dos agentes desse processo. As escolas médicas encontramse, em sua maioria, reproduzindo uma formação dicotomizada, expressa na organização curricular disciplinar, fragmentada e focada em especialidades, tendo como campo predominante de prática o hospital universitário, enfatizando práticas em saúde procedimento-centradas e desconsiderando as usuário-centradas.

Aproximando-nos das diretrizes do SUS, não fica difícil perceber que o projeto de transformação da assistência à saúde da população brasileira foi concebido sem levar em consideração os atores que fariam o sistema funcionar. Por analogia: uma máquina com tecnologia de ponta e alta complexidade não funciona se não houver alguém capacitado para operá-la. Isso pode ser transcrito para a atual política de Saúde Pública: criou-se um Sistema Único de Saúde, mas os envolvidos em sua implantação, seu funcionamento e sua manutenção não se encontram comprometidos nem preparados para atuar nesse sistema, uma vez que as instituições formadoras não acompanharam, na prática, as mudanças decorrentes dessa nova orientação. Na teoria, é atribuída ao SUS a competência de ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde, com base em um novo modelo que integre a formação teórica com a prática nos serviços. É necessária e urgente a relação que a universidade deve estabelecer com o SUS, valendo-se, inclusive, das políticas públicas que vêm sendo implementadas e que garantem essa integração.

O debate sobre a formação e o desenvolvimento na área de saúde como ação estratégica para a condução da agenda de renovação e reforma no setor saúde parte, portanto, do entendimento de que uma profunda reforma setorial, como profunda renovação das organizações de saúde, não se faz sem uma política de educação no setor. [...] Apesar de não restar dúvida de que um profundo processo de reformas não pode se fazer sem profundas alterações no perfil ético, técnico e institucional do pessoal que irá atuar [...], nenhuma reforma se fará sem alterar a qualidade das relações de cuidado à saúde, sob pena de aperfeiçoar-se a organização técnica do Sistema e não se gerar, nos usuários das ações e serviços ou na população, a sensação de cuidado.

No nosso entendimento, à inovação curricular correspondem as alterações que buscam construir novos processos de formação dos profissionais nas suas relações com a estrutura socioeconômica, envolvendo, nessas relações, outras, referentes aos conteúdos, processos e métodos de ensino/aprendizagem. Inclui, portanto, alterações significativas no currículo, que podem se tornar o embrião de transformações importantes na relação universidade-escola-comunidade.

No texto das DCN, por exemplo, das 22 competências e habilidades listadas para o egresso do curso de Medicina, grande parte indica uma ação, um comportamento, um resultado que o profissional deve alcançar, o que, resumidamente, retiramos do texto oficial:

[...] comunicar-se adequadamente com seus colegas de trabalho, pacientes e familiares; realizar com proficiência a anamnese [...]; diagnosticar e tratar corretamente as principais doenças do ser humano [...]; utilizar adequadamente recursos semiológicos e terapêuticos [...]; realizar procedimentos clínicos e cirúrgicos indispensáveis para o atendimento ambulatorial e para o atendimento inicial das urgências e emergências em todas as fases do ciclo biológico [...]

Poucas dessas competências referem-se a posturas e valores, como se pode observar naquelas que identificamos, também, no texto das DCN:

[...] lidar criticamente com a dinâmica do mercado e com as políticas de saúde; reconhecer suas limitações e encaminhar, adequadamente, pacientes portadores de problemas que fujam do alcance de sua formação geral; atuar em equipe multiprofissional [1].

Entretanto, deve-se reconhecer a importância desse documento, pois demonstra claramente a intenção de enfatizar o papel social do egresso e aproximar a formação do médico das necessidades da população, das questões políticas, do trabalho interdisciplinar em prevenção e promoção da saúde. Mesmo que de forma ainda pouco extensa, sua formulação sugere um avanço em termos de inovar o currículo dos profissionais da área.

Nesse contexto, a escolha do tema "Fraternidade e Saúde Pública" vem reforçar ainda mais a necessidade de uma medicina no país voltada para promover a saúde sem distinção de classe social, com ações que humanizem o desempenho dos profissionais da área e conscientizem os estudantes de sua importância como agentes dessa transformação.

Os médicos mais atentos e competentes já concluíram que não se podem aferir os males que afligem as pessoas tão somente pelas respostas dadas pelas máquinas de diagnosticar. Um ser humano, antes de tudo, quer ser tratado como gente. Precisa de solidariedade, de atenção, de afago no seu ego fragilizado pela doença, além de prescrições medicamentosas ou procedimentos médicos propriamente ditos. A relação causa-efeito, que imprime cientificidade à Medicina, precisa saber ler as entrelinhas que habitam o ente que perdeu a saúde.

A United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) proclamou para esse século quatro princípios norteadores da Educação [2]:

a) Aprender a conhecer, unindo teoria e prática, prática e teoria em tudo que se ensina;

b) Aprender a fazer aquilo que é ensinado;

c) Aprender a conviver com os outros;

d) Aprender a ser.

Já nessa primeira década do século atual, percebe-se que os cidadãos estão preocupados também em "aprender a viver". Daí, o grande volume de informações sobre saúde e vida nas publicações [3-5]. A busca da longevidade virou preocupação universal.

O saber médico perde poderes se não for aplicado com arte. Hipócrates há quase 2500 anos já ensinava que "Medicina é ciência e arte". Arte de perscrutar as aflições e os anseios daqueles que pretende curar. Antonio Murri nos oferece uma frase lapidar sobre a atuação do médico:

"Se puderes curar, cura; se não puderes curar, alivia; se não puderes aliviar, consola"

REFERÊNCIAS

1. Brasil. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN). Resolução CNE/CES Nº 4, de 7 de novembro de 2001. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES04.pdf

2. Werthein J, Cunha C. Fundamentos da nova educação. Brasília: UNESCO; 2000. 84p.

3. Saadia A. Temas para discussão e discordância. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2005;20(3):II-IV. Visualizar artigo

4. Braile D. O futuro da cirurgia cardiovascular. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2006;21(2):I-II. Visualizar artigo

5. Barbosa GV. Um novo programa de residência médica em cirurgia cardiovascular com acesso direto. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2006;21(4):XII-XIV. Visualizar artigo

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