Article

lock Open Access lock Peer-Reviewed

372

Views

ARTIGO ORIGINAL

Dominância coronariana na síndrome da hipoplasia do coração esquerdo

Decio Cavalet Soares AbuchaimI; Carla TanamatiII; Marcelo Biscegli JateneIII; Miguel Lorenzo Barbero MarcialIV; Vera Demarchi AielloV

DOI: 10.5935/1678-9741.20110051

INTRODUÇÃO

A síndrome do coração esquerdo hipoplásico (SCEH) é um espectro de malformações cardíacas caracterizado pelo hipodesenvolvimento acentuado do complexo coração esquerdo e aorta, incluindo cavidade e massa ventricular esquerda. Em uma das pontas do espectro está a atresia mitral e aórtica, com ausência da cavidade ventricular esquerda, havendo, no outro extremo, casos com variados graus de hipoplasia das valvas mitral e aórtica e também hipoplasia ventricular [1], levando à impossibilidade de manutenção do débito cardíaco e da perfusão sistêmica pelo coração esquerdo e a perfusão sistêmica. Em séries anatômicas, existe predomínio do fenótipo com valva mitral patente (67%) [2].

Apesar de a SCEH ser extensamente estudada e o tratamento cirúrgico por cirurgias paliativas do tipo Norwood [3,4] ou por procedimentos chamados de híbridos [5,6] ter resultados satisfatórios em numerosos centros [7,8], esta doença ainda apresenta mortalidade elevada entre o primeiro e segundo estágio, se comparada a outras doenças tratadas como fisiologia univentricular. Também existe controvérsia sobre se pacientes do subgrupo com estenose mitral e atresia aórtica apresentariam risco maior de óbito após o primeiro estágio das cirurgias paliativas [9-11], por fatores relacionados à perfusão miocárdica ou a alterações histológicas.

Ainda que a mortalidade por insuficiência coronária pós-operatória seja comumente causada por fatores técnicos da reconstrução do arco aórtico [12], também pode ser provocada por anormalidades coronárias intrínsecas, como a hipoplasia dos ramos epicárdicos e roubo de fluxo coronariano por fístulas, principalmente se associadas a hipertrofia miocárdica, como observado no subgrupo com estenose mitral, que comprometem a perfusão miocárdica [13]. Estas fistulas coronarianas habitualmente se originam dos ramos da artéria coronária esquerda [14].

Desta forma, diferenças morfológicas entre fenótipos dentro do espectro da SCEH podem vir a ser reconhecidas como limitantes da evolução favorável no pós-operatório e sua identificação pode contribuir, no futuro, na escolha terapêutica entre os subgrupos anatômicos.

Este estudo tem por objetivo determinar a forma mais frequente de dominância coronariana em corações com SCEH nos grupos com atresia e estenose mitral.

 

MÉTODOS

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Incor-HCFMUSP e registrada sob o número 0786/09, representando resultado parcial da tese de doutoramento do primeiro autor.

Seleção das peças anatômicas

A seleção das peças anatômicas foi realizada no Museu do Laboratório de Anatomia Patológica Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - InCor/HCFMUSP, de acordo os critérios descritos abaixo.

Critérios de inclusão

• Peças anatômicas de SCEH, obtidas de pacientes falecidos com idade inferior a 30 dias, de ambos os sexos.

Critérios de exclusão

• Peças anatômicas nas quais os procedimentos cirúrgicos ou o estado de preservação impeçam a identificação adequada da morfologia;

• Peças anatômicas obtidas de pacientes falecidos com idade superior a 30 dias;

• Outras anomalias congênitas com hipoplasia do ventrículo esquerdo, porém sem todos os critérios para SCEH.

Análise morfológica

As peças foram separadas conforme seu aspecto morfológico em:

• l - Grupo Atresia Mitral (AM), associada a atresia ou estenose valvar aórtica;

• ll - Grupo Estenose Mitral (EM), associada a atresia ou estenose valvar aórtica.

Estudo anatômico

No exame das peças anatômicas, foi analisada a anatomia coronariana de acordo com a distribuição dos ramos epicárdicos principais e o padrão de dominância, com auxílio de magnificação óptica.

A dominância coronariana foi definida como a relação entre os ramos das artérias coronárias na região de confluência dos sulcos atriais, ventricular e atrioventriculares, determinada pela artéria que emite o ramo interventricular posterior. Dessa forma, classificadas em direita, esquerda ou balanceada [15].

O grupo controle foi composto por nove peças de corações morfologicamente normais, com óbito no período neonatal por causa não cardiogênica.

O grupo SHCE constituiu-se de nove peças com AM e 24 peças com EM.

Foi utilizado o teste do qui-quadrado para a análise estatística, sendo considerado valores de P inferiores a 0,05 como significativos.

 

RESULTADOS

As divisões entre os subgrupos morfológicos nos corações com SCEH estão na tabela abaixo (Tabela 1).

 

 

Encontramos diferença significativa entre os dois grupos em relação à dominância coronariana (X2= 9,298; P=0,01). A dominância esquerda esteve presente em 75% dos casos de EM, e a balanceada só foi observada na EM. A Tabela 2 apresenta a distribuição dos dados.

Comparações com o grupo controle

Foram realizados os testes de qui-quadrado considerando-se os três grupos, estes testes foram significativos (P<0,01), já que no grupo controle foi observada apenas a dominância direita.

 

DISCUSSÃO

A dominância coronariana direita é a forma anatômica mais observada em humanos normais [16,17], ocorrendo em 72% dos indivíduos [15]. Na SCEH, a dominância foi pouco estudada [18] e a maioria dos estudos analisou aspectos morfológicos e suas alterações histológicas [19-22].

Na SHCE, o trajeto dos vasos coronarianos epicárdicos é similar aos corações normais [20] e a presença de fístulas coronário-cavitárias, anomalias de origem e tortuosidades dos vasos coronarianos são relacionadas a complicações e maior mortalidade [13].

Nos corações com estenose mitral e estenose aórtica, os achados de fístulas coronarianas são mais evidentes [19]. Sauer et al. [21] demonstraram que, na estenose mitral com atresia aórtica, há associação de 42% de anomalias coronárias, como espessamento e tortuosidade da parte proximal da artéria coronária esquerda em casos que apresentavam ainda fibroelastose endocárdica. A identificação pré-operatória das anomalias pode evitar lesão direta ou de áreas subjacentes em uma cirurgia que envolva a reconstrução da raiz aórtica [23].

Vida et al. [9] propuseram que pacientes do subgrupo estenose mitral e atresia aórtica devam ser submetidos a cineangiocoronariografia pré-operatória para definir a magnitude das fístulas coronário-cavitárias, pelo risco maior, sugerindo o transplante cardíaco ou procedimentos híbridos como opções terapêuticas. Em sua casuística, a mortalidade hospitalar foi significativamente maior (29% vs. 7,9%, P = 0,002) neste subgrupo em relação aos demais. Comunicações coronário-cavitárias também foram associadas a maior mortalidade (50% vs. 6%, P = 0,004).

Glatz et al. [10], em estudo retrospectivo de 72 pacientes submetidos a cirurgia do tipo Norwood, observaram que a mortalidade inter-estágio foi superior nos pacientes portadores de atresia aórtica e estenose mitral, correlacionando a possíveis anormalidades coronarianas, como espessamento da camada média e conexões ventrículo-coronárias, que poderiam predispor a isquemia e disfunção ventricular e potenciais arritmias fatais. Esses autores cogitam a possibilidade de que a cirurgia de Sano, que interpõe tubo entre o ventrículo direito e o tronco pulmonar, se realizada no subgrupo de pacientes com fístulas, poderia limitar o roubo de fluxo na diástole para as artérias pulmonares, em detrimento de artérias coronárias potencialmente vulneráveis.

Em nosso meio, Silva et al. [7] não demonstraram diferenças entre as técnicas de Norwood e Sano. Alguns autores fazem inferência de que os resultados melhores com a técnica de Sano estariam mais relacionados ao aumento de experiência dos grupos do que a particularidades hemodinâmicas.

Sathanandam et al. [11], analisando a sobrevida em 30 dias de 100 pacientes submetidos a cirurgia do tipo Norwood, obtiveram 90% de sucesso em todo grupo e 89,9% no subgrupo estenose mitral e atresia aórtica aos 60 dias 70% e 70,4%, respectivamente, sem diferença significativa. Para estes autores, a presença de fistulas coronário-cavitárias não apresentou influência na mortalidade.

Após o período neonatal, os pacientes com SHCE têm evolução similar aos demais com fisiologia de ventrículo único [24].

Em nossa casuística, a dominância esquerda foi predominante na SHCE. Hansel et al. [18], em um estudo angiográfico, também observaram que a dominância esquerda havia sido mais frequente na SHCE do que na população normal, embora na série estudada a dominância direita tenha prevalecido. Naquela amostra, a dominância direita ocorreu em 51,2%, esquerda em 36,9% e a balanceada em 11,9%, sem, contudo, encontrarem diferença estatística entre os grupos morfológicos. A dominância esquerda e a balanceada foram significativamente mais comuns na ausência de cavidade ventricular esquerda, em oposição aos nossos achados, onde a dominância esquerda foi significativamente maior nos casos com estenose mitral e ventrículo com cavidade detectável.

A principal implicação clínica de nosso estudo é que o paciente com SHCE deve ser tratado de forma individualizada, ponderando as peculiaridades anatômicas. É possível que pacientes com fístulas e dominância esquerda tenham diferente prognóstico e evolução quando comparados aos com fístulas mais dominância direita. Todavia, este estudo apresenta a limitação de ter sido realizado em peças de necropsia e, assim, presumivelmente, representariam os casos com as alterações morfológicas mais acentuadas.

Defendemos, no entanto, que seja possível que pacientes com fístulas coronarianas e dominância coronariana esquerda tenham diferente prognóstico e evolução se comparados aos portadores de fístula mas com dominância coronariana direita, pela área total de miocárdio irrigado, seu potencial de isquemia e arritmias secundárias. Estes dados serão avaliados dentro de uma investigação histológica atualmente em curso.

 

CONCLUSÕES

Os dados aqui apresentados, resultantes de corações de necropsia, permitiram concluir que o padrão de dominância esquerda é mais frequente na SCEH que no grupo controle de corações normais, sendo ainda mais prevalente no subgrupo com estenose mitral.

REFERÊNCIAS

1. Tchervenkov CI, Jacobs ML, Tahta SA. Congenital Heart Surgery Nomenclature and Database Project: hypoplastic left heart syndrome. Ann Thorac Surg. 2000;69(4 Suppl):S170-9. [MedLine]

2. Aiello VD, Ho SY, Anderson RH, Thiene G. Morphologic features of the hipoplastic left heart syndrome: a reappraisal. Pediatr Pathol. 1990;10(6):931-43. [MedLine]

3. Stasik CN, Gelehrter S, Goldberg CS, Bove EL, Devaney EJ, Ohye RG. Current outcomes and risk factors for the Norwood procedure. J Thorac Cardiovasc Surg. 2006;131(2):412-7. [MedLine]

4. Fantini FA, Gontijo Filho B, Martins C, Lopes RM, Heiden E, Vrandecic E, et al. A operação de Norwood modificada para tratamento da síndrome de hipoplasia do coração esquerdo. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2004;19(1):42-6. Visualizar artigo

5. Galantowicz M, Cheatham JP, Phillips A, Cua CL, Hoffman TM, Hill SL, et al. Hybrid approach for hypoplastic left heart syndrome: intermediate results after the learning curve. Ann Thorac Surg. 2008;85(6):2063-70.

6. Assad RS, Zamith MM, Silva MF, Thomaz PG, Miana LA, Guerra VC, et al. Nova bandagem ajustável das artérias pulmonares na síndrome de hipoplasia de câmaras esquerdas. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2007;22(1):41-8. [MedLine] Visualizar artigo

7. Silva JP, Fonseca L, Baumgratz JF, Castro RM, Franchi SM, Lianza AC, et al. Síndrome do coração esquerdo hipoplásico: estratégia cirúrgica e comparação de resultados com técnicas de Norwood x Sano. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2007;22(2):160-8. [MedLine] Visualizar artigo

8. Furlanetto G, Furlanetto BHS, Henriques SS, Kapins CEB, Lopes LM, Olmos MCC, et al. Nova técnica: operação de Norwood com perfusão regional cerebral e coronariana. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2009;24(4):447-52. [MedLine] Visualizar artigo

9. Vida VL, Bacha EA, Larrazabal A, Gauvreau K, Dorfman AL, Marx G, et al. Surgical outcome for patients with the mitral stenosis-aortic atresia variant of hypoplastic left heart syndrome. J Thorac Cardiovasc Surg. 2008;135(2):339-46. [MedLine]

10. Glatz JA, Fedderly RT, Ghanayem NS, Tweddell JS. Impact of mitral stenosis and aortic atresia on survival in hypoplastic left heart syndrome. Ann Thorac Surg. 2008;85(6):2057-62. [MedLine]

11. Sathanandam SK, Polimenakos AC, Roberson DA, elZein CF, Van Bergen A, Husayni TS, et al. Mitral stenosis and aortic atresia in hypoplastic left heart syndrome: survival analysis after stage I palliation. Ann Thorac Surg. 2010;90(5):1599-607.

12. Bartram U, Grunenfelder J, van Praagh R. Causes of death after the modified Norwood procedure: a study of 122 postmortem cases. Ann Thorac Surg. 1997;64(6):1795-802. [MedLine]

13. DeRose JJ Jr, Corda R, Dische MR, Eleazar J, Mosca RS. Isolated left ventricular ischemia after the Norwood procedure. Ann Thorac Surg. 2002;73(2):657-9. [MedLine]

14. O'Connor WN, Cash JB, Cottrill CM, Johnson GL, Noonan JA. Ventriculocoronary connections in hypoplastic left hearts: an autopsy microscopic study. Circulation. 1982;66(5):1078-86. [MedLine]

15. Abuchaim DCS, Spera CA, Faraco DL, Ribas Filho JM, Malafaia O. Dominância coronariana em corações humanos em moldes por corrosão. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2009;24(4):514-8. [MedLine] Visualizar artigo

16. Kato T, Yasue T, Shoji Y, Shimabukuro S, Ito Y, Goto S, et al. Angiographic difference in coronary artery of man, dog, pig and monkey. Acta Pathol Jpn. 1987;37(3):361-73. [MedLine]

17 . Falci Jr . R, Prates NEVB . Anatomia das artérias coronárias . Rev Med . 1994 ; 72 ( 1/4 ): 21-4 .

18. Hansen JH, Uebing A, Scheewee J, Kramer H-H, Fischer G. The coronary arteries in patients with hypoplastic left heart syndrome: an angiographic study and its clinical implications. Cardiol Young. 2011;121(S1):134.

19. Baffa JM, Chen SL, Guttenberg ME, Norwood WI, Weinberg PM. Coronary artery abnormalities and right ventricular histology in hypoplastic left heart syndrome. J Am Coll Cardiol. 1992;20(2):350-8. [MedLine]

20. Freedom RM, Nykanen D. Hypoplastic left heart syndrome: pathologic considerations of aortic atresia and variations on the theme. Prog Pediatr Cardiol. 1996;5(1):3-18.

21. Sauer U, Gittenberger-de Groot AC, Geishauser M, Babic R, Buhlmeyer K. Coronary arteries in the hypoplastic left heart syndrome. Histopathologic and histometrical studies and implications for surgery. Circulation. 1989;80(3 Pt 1):I168-76. [MedLine]

22. Anderson RH, Spicer D. Fistulous communications with the coronary arteries in the setting of hypoplastic ventricles. Cardiol Young. 2010;20(Suppl 3):86-91. [MedLine]

23. Saroli T, Gelehrter S, Gomez-Fifer CA, van der Velde ME, Bove EL, Ensing GJ. Anomalies of left coronary artery origin affecting surgical repair of hypoplastic left heart syndrome and Shone complex. Echocardiography. 2008;25(7):727-31. [MedLine]

24. Souza AH, Fonseca L, Franchi SM, Lianza AC, Baumgratz JF, Silva JP. A síndrome do coração esquerdo hipoplásico não constitui fator de risco para operação de Fontan. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2010;25(4):506-9. [MedLine] Visualizar artigo

Article receive on terça-feira, 2 de agosto de 2011

CCBY All scientific articles published at bjcvs.org are licensed under a Creative Commons license

Indexes

All rights reserved 2017 / © 2024 Brazilian Society of Cardiovascular Surgery DEVELOPMENT BY