Article

lock Open Access lock Peer-Reviewed

454

Views

RELATO DE CASO

Ferimento cardíaco transfixante por projétil de arma de fogo: relato de caso

Carlos Junior Toshiyuki Karigyo0; Otávio Goulart Fan0; Ricardo José Rodrigues0; Marcos José Tarasiewich0

DOI: 10.1590/S0102-76382011000200023

 

 

INTRODUÇÃO

O trauma cardíaco penetrante constitui em condição letal. Tal lesão carrega altas taxas de mortalidade mesmo quando suas vítimas conseguem atendimento hospitalar. Taxas reais de sobrevida são de difícil cálculo, mas muitos estudos estimam taxas de sobrevida variando entre 3%-84% [1-7]. O mecanismo do trauma e o quadro clínico à admissão hospitalar são as variáveis mais importantes para a determinação do desfecho nesses pacientes, porém alguns estudos indicam outras além das mencionadas anteriormente, como a presença de lesões em múltiplas câmaras cardíacas [1,7]. Apesar da predominância de ferimentos cardíacos por armas brancas, um crescente número de lesões cardíacas por armas de fogo tem sido relatado devido ao aumento da violência urbana e ao maior acesso da população civil às armas de fogo [1-7]. Maiores taxas de mortalidade têm sido relacionadas a ferimentos cardíacos por projéteis de armas de fogo, atingindo até 100% quando da presença de lesões em múltiplas câmaras [6].

 

RELATO DO CASO

O presente trabalho de relato de caso foi realizado após consentimento livre e esclarecido do paciente estudado e aprovação do Comitê de Ética do Hospital Evangélico de Londrina.

Paciente do sexo masculino de 40 anos de idade à época foi trazido à unidade de emergência do Hospital Evangélico de Londrina com lesões por projétil de arma de fogo em regiões de hemitórax esquerdo, assim como laceração e ferimento transfixante em orelha e braço esquerdos, respectivamente, provocados durante tentativa de roubo. À admissão, apresentava-se descorado, com perfusão periférica diminuída, taquicárdico e com diminuição de murmúrio vesicular em hemitórax esquerdo. Foram estabelecidas medidas iniciais de suporte à vítima para estabilização de seu quadro. A radiografia de tórax mostrava projétil de arma de fogo posterior ao coração e moderado derrame pleural em hemitórax esquerdo, e derrame pericárdico evidenciado à tomografia computadorizada de tórax.

Mesmo com o paciente hemodinamicamente estável, dado o risco de tamponamento cardíaco e de lesão cardíaca, optou-se por realizar intervenção cirúrgica de urgência. O acesso cirúrgico à cavidade torácica foi obtido por toracotomia ântero-lateral esquerda. Em seguida à abertura da cavidade, observou-se lesão transfixante em língula, assim como quantidade moderada de sangue em cavidade pleural e hematoma em abundante gordura pericárdica. Após dissecção da gordura pericárdica, notou-se um pequeno orifício no saco pericárdico, sendo então realizada pericardiotomia. Sangue em moderada quantidade e coágulos em cavidade pericárdica foram identificados e removidos. As lesões cardíacas decorrentes do projétil foram observadas em parede anterior de ventrículo esquerdo (VE) (orifício de entrada), que apresentava abundante sangramento arterial, próximo à artéria coronária descendente anterior, e em região de parede posterior do ventrículo direito (VD) (orifício de saída), próxima à artéria coronária direita (Figura 1).

 

 

 

Devido à dificuldade local na exploração e correção do ferimento em parede posterior, decidiu-se pela ampliação da incisão (toracotomia bilateral com secção transversa de esterno). Ambas as lesões cardíacas foram reparadas por pontos separados em "U" com fios de poliéster 2-0 com pledge, e o segmento pulmonar corrigido por rafia em sutura contínua com fio de poliglactina 910 3-0. Após reparo das lesões e revisão da hemostasia, foram inseridos dois drenos, um na cavidade pericárdica e outro na cavidade pleural, e a cirurgia concluída com o fechamento do tórax por planos. O paciente foi então encaminhado à Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em condição clínica estável. Desenvolveu choque cardiogênico 36 horas após o procedimento. Apresentou boa recuperação após medidas clínicas de suporte. Permaneceu internado em UTI durante 19 dias, e recebeu alta hospitalar 26 dias após a operação. Não foram constatadas evidências de comunicação interventricular durante o seguimento pós-operatório.

Apesar da gravidade das lesões cardíacas sofridas pelo paciente, este retornou à sua vida cotidiana após a alta hospitalar, e 7 anos após o incidente ele permanece ativo e assintomático. Segue em tratamento clínico para evitar remodelamento ventricular usando betabloqueador e inibidor de enzima de conversão de angiotensina em doses otimizadas. 

 

DISCUSSÃO

Ferimentos cardíacos penetrantes são incomuns, sendo estimados em menos de 10 casos a serem admitidos ao ano dentre todas as admissões por trauma na maioria das instituições hospitalares [1], e, apesar do aperfeiçoamento de outras áreas de cuidados ao paciente traumatizado, um grande número de vítimas de lesões cardíacas penetrantes morre antes de sua admissão hospitalar [1,3]. A maioria das lesões cardíacas penetrantes é causada por armas brancas ou por projéteis de armas de fogo, mas tais ferimentos podem ser ocasionados por corpos estranhos, assim como por fraturas de costelas ou de esterno [1].

Lesões por armas brancas são mais frequentes que as por armas de fogo em se tratando de ferimentos cardíacos penetrantes, porém o aumento no índice da violência urbana tem contribuído para a crescente importância dessas lesões por armas de fogo [4-9]. Em estudo retrospectivo realizado por Rodrigues et al. [5], dos 70 pacientes com ferimentos cardíacos penetrantes incluídos no estudo, 43 (61,4%) apresentavam ferimentos por armas brancas e 27 (38,6%) por armas de fogo, e respectivas taxas de mortalidades de 52,2% e 47,8%, não havendo diferenças estatisticamente significativas na mortalidade entre os pacientes dos dois grupos. Degiannis et al. [7], em trabalho composto por 117 pacientes com trauma cardíaco penetrante por armas brancas ou por projéteis de armas de fogo, demonstraram que dentre aquelas vítimas de lesões cardíacas por armas de fogo (21/117 ou 17,9%), a mortalidade atingiu 81%, enquanto que a mortalidade associada a lesões por armas brancas foi de 15,6% (com P < 0,0001). O mesmo trabalho não demonstrou diferenças nas taxas de mortalidade entre os pacientes com ferimentos em uma ou em múltiplas câmaras cardíacas.

Em estudo retrospectivo realizado por Lone et al. [6], dos 40 pacientes operados devido a lesões cardíacas por projéteis de armas de fogo ou estilhaços, 35 (87,5%) tiveram lesões em uma única câmara cardíaca, com taxa de sobrevivência de 62,8% (22/35), enquanto que cinco (12,5%) pacientes apresentaram lesões em múltiplas câmaras e nenhum deles sobreviveu (100% de mortalidade). O paciente do presente relato apresentou lesão transfixante que acometeu tanto VE quanto VD, o que o caracteriza como um caso extremamente raro não só pelo mecanismo do trauma, como também pelo desfecho apresentado. Kangah et al. [8] relataram caso semelhante com lesão biventricular e desfecho satisfatório após intervenção cirúrgica 10 horas após o incidente. Os autores explicam que as lesões penetrantes ventriculares tendem a sangrar menos intensamente do que as atriais, por serem estancadas durante as contrações miocárdicas, fato que pode ter sido relevante para o resultado favorável apresentado por nosso paciente, assim como por paciente relatado por Meira et al. [9], em que o projétil alojado em VD fora retirado 18 dias após o trauma.

 

REFERÊNCIAS

1. Kang N, Hsee L, Rizoli S, Alison P. Penetrating cardiac injury: overcoming the limits set by Nature. Injury. 2009;40(9):919-27. [MedLine]

2. Asfaw I, Arbulu A. Penetrating wounds of the pericardium and heart. Surg Clin North Am. 1977;57(1):37-48. [MedLine]

3. Campbell NC, Thomson SR, Muckart DJ, Meumann CM, Van Middelkoop I, Botha JB. Review of 1198 cases of penetrating cardiac trauma. Br J Surg. 1997;84(12):1737-40. [MedLine]

4. Mataraci I, Polat A, Cevirme D, Büyükbayrak F, Sasmazel A, Tuncer E, et al. Increasing numbers of penetrating cardiac trauma in a new center. Ulus Travma Acil Cerrahi Derg. 2010;16(1):54-8. [MedLine]

5. Rodrigues AJ, Furlanetti LL, Faidiga GB, Scarpelini S, Evora PRB, Vicente WVA. Penetrating cardiac injuries: a 13-year retrospective evaluation from a Brazilian trauma center. Interact Cardiovasc Thorac Surg. 2005;4(3):212-5. [MedLine]

6. Lone RA, Wani MA, Hussain Z, Dar AM, Sharma ML, Bhat MA, et al. Missile cardiac injuries: review of 16 years' experience. Ulus Travma Acil Cerrahi Derg. 2009;15(4):353-6. [MedLine]

7. Degiannis E, Loogna P, Doll D, Bonanno F, Bowley DM, Smith MD. Penetrating cardiac injuries: recent experience in South Africa. World J Surg. 2006;30(7):1258-64. [MedLine]

8. Kangah M, Kirioua-Kamenan A, Amani A, Souaga A, Katche E, Kouame J, et al. Biventricular transfixing wound by firearm operated in the Cardiology Institute of Abidjan: a case report. J Chir Thorac Cardiovasc. 2010;14(1):60-2.

9. Meira EBS, Guidugli RB, Meira DBS, Rocha RM, Ghefter MC, Richter I. Abordagem terapêutica dos projéteis retidos no coração. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2005;20(1):91-3. Visualizar artigo

Article receive on sexta-feira, 16 de julho de 2010

CCBY All scientific articles published at bjcvs.org are licensed under a Creative Commons license

Indexes

All rights reserved 2017 / © 2024 Brazilian Society of Cardiovascular Surgery DEVELOPMENT BY