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ARTIGO ORIGINAL

Avaliação dos valores séricos de troponina I cardíaca em crianças menores de 1 ano de idade

Antonio Carlos Arruda SOUTOI; Werther Brunow de CARVALHOII

DOI: 10.1590/S0102-76382008000300015

INTRODUÇÃO

Descobertas em 1963 por Setsuro Ebashi [1], as troponinas formam um complexo de proteínas que modula a velocidade e a força da contração muscular estriada. O complexo é formado por três subunidades: a troponina T (TnT), responsável pelo ancoramento do complexo à tropomiosina; a troponina C (TnC), que se liga ao cálcio regulando a contração muscular; e a troponina I (TnI), que atua como unidade inibitória da contração muscular [2].

A TnI pode ser encontrada em três isoformas, com diferentes estruturas protéicas, determinadas por genes distintos e específicos para cada isoforma [3]. Duas isoformas estão presentes na musculatura esquelética, uma nas fibras de contração rápida e outra nas de contração lenta. A terceira isoforma, presente no miocárdio, é chamada de Troponina I cardíaca (TIc) [4].

A diferença estrutural entre as isoformas de TnI permitiu que Cummins et al. [5] desenvolvessem o primeiro radioimunoensaio capaz de identificar a liberação de TIc no infarto agudo do miocárdio (IAM) e publicassem seus resultados em 1987.

O aprimoramento do método [6] e o grande número de trabalhos investigando a utilidade do mesmo no diagnóstico de lesão miocárdica [7] fizeram com que este se tornasse um dos principais marcadores bioquímicos do IAM [8].

Em pediatria, as pesquisas se concentram na utilização deste marcador no diagnóstico de lesão miocárdica relacionada à correção cirúrgica de cardiopatias congênitas. Estes estudos demonstram a aplicação do método em diferentes situações, desde o diagnóstico de eventos que acompanham a realização de procedimentos operatórios até a sua utilização como marcador prognóstico [9-12].

A dosagem de TIc também tem se apresentado como um importante método auxiliar na condução de outras afecções pediátricas como na miocardite [13], na sepse [14] e na doença de Kawasaki [15], doenças onde a disfunção cardíaca é um evento comum.

Para uma adequada utilização de marcadores bioquímicos na prática clínica diária, é necessário que se definam quais os valores de referência [16]. Alguns estudos têm surgido com essa finalidade, encontrando resultados em pediatria semelhantes às pesquisas em adultos [17], porém, outros têm apresentado valores elevados de TIc em crianças abaixo de um ano de vida [18,19].

A indefinição com relação aos valores de referência para TIc em pediatria e a importância deste método diagnóstico, por suas características e aplicabilidade, motivaram a realização desta pesquisa.


MÉTODOS

Pesquisa realizada após aprovação pela Comissão de Ética em Pesquisa das instituições envolvidas, caracterizando-se por ser um estudo clínico, prospectivo, não randomizado, observacional, para o aprimoramento de novas formas diagnósticas.

Entre os dias 15 de janeiro de 2003 e 13 de fevereiro do mesmo ano, 99 crianças com idade abaixo de 1 ano foram incluídas no estudo, após a assinatura, pelo responsável legal, do termo de consentimento livre e esclarecido, sendo submetidos à dosagem de TIc.

As crianças envolvidas no estudo preencheram critérios de inclusão onde deveriam apresentar idade abaixo de um ano, incluindo recém-nascidos a termo, ausência de cardiopatias diagnosticadas previamente ou qualquer condição clínica que se relacione de alguma maneira com disfunção cardíaca, estabilidade hemodinâmica, determinada por avaliação clínica, sem o uso de suporte mecânico ou farmacológico.

Foram divididos em dois grupos, de acordo com a faixa etária. O grupo I, com recém-nascidos até 28 dias de vida. O grupo II com lactentes, entre 29 dias de vida e um ano. Os recém-nascidos do grupo I foram submetidos a coleta no momento da realização de exames de rotina do berçário e as crianças do grupo II, no momento da realização de exames ambulatoriais pré-operatórios e para acompanhamento de puericultura, exames solicitados por profissionais que não estavam envolvidos no estudo.

A coleta das amostras, o armazenamento e a realização do ensaio obedeceram às orientações do fabricante e literatura pertinente.

As amostras foram coletadas, usando-se técnicas convencionais de venipuntura periférica, preferivelmente em região cubital direita, com seringa plástica e agulha descartáveis, sem adição de solução anticoagulante.

Após a coleta da amostra, 2 ml de sangue foram colocados em tubo de vidro e encaminhados para que se separasse o soro por meio da centrifugação a 3000 rpm, por 10 minutos. O soro separado foi armazenado em tubo de vidro, sob temperatura de +3oC. As amostras permaneceram armazenadas, em média, por 24 horas, não ultrapassando um período de 72 horas de armazenamento até a dosagem de TIc.

Para análise das amostras foi utilizado o kit específico Opus T Troponin I (cTn) test modules (Dade Behring Inc. - Newalk, DE 19714, USA) e o aparelho Opus plus® analyzer (Behring Diagnostics Inc. - Westwood, MA 02090, USA).

O ensaio é baseado no princípio de um imunoensaio fluorogênico ligado à enzima tipo "sanduíche" (anticorpo-antígeno-anticorpo ligado), ou de dois sítios, com anticorpos monoclonais de rato, antitroponina I cardíaca.

A análise é realizada automaticamente pelo analisador Opus plus®.

A concentração é reportada em nanogramas por mililitros (ng/ml) de soro.

A faixa de ensaio do método é de 0,1 a 50,0 ng/ml.

A sensibilidade analítica do ensaio é de 0,1 ng/ml, sendo que todos os valores abaixo deste são referidos como < 0,1 ng/ml pelo analisador. O valor de referência para normalidade estabelecido pelo laboratório é menor do que 0,5 ng/ml.


RESULTADOS

Foram incluídas 99 crianças no estudo, as quais foram submetidas a dosagem de TIc e divididas em dois grupos: o grupo I, com 74 recém-nascidos, 35 do gênero masculino (3,18 ± 0,44 kg) e 39 do gênero feminino (3,14 ± 0,42 kg); e o grupo II, com 25 lactentes, 16 do gênero masculino (8,5 ± 2,4 kg) e 9 do gênero feminino (8,2 ± 1,0 kg).

Os recém-nascidos do grupo I foram submetidos a coleta no primeiro dia de vida, com exceção de um submetido a coleta no 13º dia de vida. A média de idade dos lactentes do grupo II no momento da coleta foi de 7,6 ± 2,8 meses para o grupo masculino e 8,2 ± 1,9 meses para o grupo feminino.

A dosagem de Tic foi encontrada abaixo da sensibilidade analítica do ensaio, 0,1 ng/ml, em todas as crianças, tendo sido reportada como < 0,1 ng/ml pelo analisador (Opus plus).


DISCUSSÃO

Os resultados de nosso estudo vão ao encontro dos resultados de outros trabalhos que têm observado valores normais de TIc em pacientes pediátricos sem lesão miocárdica [17]. A distribuição de todos os valores encontrados dentro da faixa de referência para normalidade (< 0,1 ng/ml) não é um fato inesperado, uma vez que os dados de literatura relacionam ao método uma alta especificidade [20] e a população estudada não apresentava nenhum dado clínico que sugerisse a existência de lesão miocárdica, o que foi determinado pelos critérios de inclusão no estudo.

Entre os estudos encontram-se duas publicações, que tiveram por objetivo definir valores de referência na população pediátrica, onde os autores consideraram um novo e excitante dado ter, como resultado, uma grande porcentagem de pacientes no primeiro ano de vida apresentando valores elevados de TIc [18,19].

Os autores dessas publicações sugerem que o aumento dos níveis séricos de TIc está relacionado a apoptose de células miocárdicas. No entanto, é difícil se estabelecer esta relação, pois a apoptose é um fenômeno fisiológico com um importante papel no desenvolvimento de vários órgãos, sendo suprimida no início da vida extra-uterina e, apesar da denominação de morte celular, ocorre usualmente em células isoladas e não se acompanha de processo inflamatório. As células sofrem uma herniação da membrana celular, redução de seu volume, condensação da cromatina nuclear e, finalmente, são fagocitadas por macrófagos e células vizinhas [21-23].

Uma importante consideração a ser feita, quando se comparam resultados de diferentes estudos, é a influência da metodologia utilizada. Existe uma grande variabilidade de resultados entre um método e outro [24].

Esta variabilidade esta relacionada à série de processos que irão alterar a forma de apresentação da TIc após a sua liberação. Somente 10% da TIc liberada mantêm-se na forma livre, os outros 90% formam complexos, principalmente com a troponina C, além disso, a TIc também pode ser submetida a um processo de proteólise e outros processos bioquímicos que a tornará oxidada ou reduzida. Estas várias alterações interferem na reação da TIc com os anticorpos específicos presentes nos diferentes métodos e, conseqüentemente, com seus resultados [25].

O método utilizado em nosso estudo, Opus T Troponin I (cTn) test modules (Dade Behring Inc. - Newalk, DE 19714, USA), foi escolhido por ser um método comercial, com o qual já se desenvolveu uma importante habilidade no uso diário e se encontrava disponível em nossa instituição.

O uso diário da dosagem sérica de TIc no diagnóstico de IAM em pacientes adultos, por meio deste método, tem gerado resultados que vão ao encontro dos dados da literatura com relação à sensibilidade, especificidade e evolução temporal, fazendo com que este venha sendo uma importante ferramenta auxiliar no diagnóstico e acompanhamento desses pacientes [20].

O nosso resultado não permitiu a realização de processos estatísticos porque, como a sensibilidade analítica do método é de 0,1 ng/ml, com o analisador Opus Plus referindo os valores abaixo deste, como menores que 0,1 ng/ml, nosso resultado deixou de se caracterizar como variável quantitativa e se tornou qualitativa, não apresentando variação.

Levin [26] define a Estatística como "...um conjunto de técnicas para a redução de dados quantitativos (ou seja, uma série de números) a um número menor de termos descritivos que sejam mais convenientes, e facilmente comunicáveis".

Levando-se em consideração a caracterização de nosso resultado e a definição de Levin, acreditamos ser justificável que não se aplique delineamento estatístico ao nosso estudo, no entanto, isso não interfere na avaliação com relação à aplicabilidade, uma vez que a distribuição de todos os valores abaixo de 0,1 ng/ml permite a conclusão que todos apresentaram valores normais, independente de sua variação dentro deste intervalo.

Após a avaliação dos dados apresentados, torna-se difícil justificar o achado de valores elevados de TIc em crianças normais, ao contrário, acreditamos que esses dados tornam o resultado de nosso estudo esperado e justificam a forma incisiva como esse resultado se apresentou, o que vem se repetindo em estudos recentemente publicados [27,28].

Apesar da variabilidade de resultados encontrados entre os diferentes métodos, a utilização deste marcador bioquímico de lesão miocárdica tem assumido um importante papel no diagnóstico e acompanhamento dos pacientes. É importante que a interpretação dos resultados na prática diária seja feita de forma relativa aos padrões laboratoriais locais e não comparativamente a outros métodos.

Novos estudos são necessários para investigar os vários aspectos relacionados à dosagem de TIc sérica e sua aplicabilidade.


CONCLUSÃO

Concluímos que o valor referência da dosagem de Troponina I cardíaca sérica, quando realizada por meio do método Opus T Troponin I (cTn) test modules (Dade Behring Inc.-Newalk, DE 19714, USA), para crianças menores de um ano de idade, incluindo recém-nascidos a termo, é um resultado menor que 0,1 ng/ml.


AGRADECIMENTOS

Estudo realizado no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina, sob a orientação do Dr. Werther Brunow de Carvalho.

Agradeço as observações feitas pelos membros da banca examinadora, Dr. Domingo Marcolino Braile, Dr. Eduardo Juan Troster e Dr. Heitor Pons Leite, as quais foram importantes na elaboração desta publicação.


REFERÊNCIAS

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Article receive on quarta-feira, 26 de março de 2008

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