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ARTIGO ORIGINAL

Avaliação da interferência da tolerância oral na rejeição do transplante de coração alogênico avascular na orelha de camundongo

Alberto VALENCIAI; Eduardo Sérgio BastosII; Vinicius da CONCEIÇÃOIII; Sylvia Maria da Nicolau CAMPOSIV; Isabela di Puglia CARVALHOV; Kalil MADIVI; Gerlinde TEIXEIRAVII

DOI: 10.1590/S0102-76382006000100014

INTRODUÇÃO

Na medicina contemporânea, um dos feitos mais notáveis foi o transplante de coração, tendo evoluído desde a experimentação animal, nos primeiros anos do século XX, até um tratamento ortodoxo, aceito para uma ampla variedade de pacientes com cardiopatia terminal. O primeiro relato, na literatura, de transplante de órgãos foi apresentado por Carrel e Guthrie [1], em 1905, quando foi transplantado o coração de um filhote para o pescoço de um cão maior. Em dezembro de 1967, Dr. Christian Barnard [2], que havia passado algum tempo com Lower, na Virgínia, observando o transplante cardíaco ortotópico, realizou o primeiro transplante cardíaco entre seres humanos, na Cidade do Cabo, na África do Sul. Passados cinco meses, em maio de 1968, foi realizado o primeiro transplante de coração, no Brasil, pelo Dr. Zerbini [3].

Após o período de entusiasmo pela descoberta da técnica, o panorama tornou-se sombrio devido aos insuperáveis problemas com a rejeição cardíaca, motivo pelo qual os programas foram temporariamente suspensos. As alterações pré-ciclosporina foram inicialmente descritas por Billingham, em 1974, que desenvolveu um sistema de classificação histológica para rejeição, baseado nas biópsias endomiocárdicas [4].Embora a infecção e a rejeição sejam as maiores causas de insucesso nos transplantados, alterações patológicas tais como a isquemia, a fibrose intersticial, a calcificação miocárdica, os infiltrados endomiocárdicos, a hipertrofia de miócitos e a coronariopatia crônica, são complicações importantes para a vida prolongada do enxerto. Dentre estas, a última é a maior ameaça [5].

Durante o processo de rejeição, a presença dos linfócitos T e B, é importante. Estes regulam a secreção dos componentes moleculares que intermediarão a inflamação responsável pela rejeição [6]. Apesar da presença marcante de células T citotóxicas em um aloenxerto, as células TCD4+ são as responsáveis por iniciar e orquestrar a resposta imune deste processo [7].

No mecanismo de rejeição de transplantes, a parte nevrálgica do processo é o reconhecimento das novas moléculas do Complexo Principal de Histocompatibilidade (MHC - Major Histocompatibility Complex), que são as moléculas mais polimórficas de que se tem registro. Para a espécie humana, podemos utilizar a nomenclatura geral (MHC) ou a específica HLA (Human Leucocyte Antigens). Este complexo gênico dá origem a dois grupos de proteínas que estão envolvidas diretamente com o reconhecimento celular entre linfócitos e as células do organismo, as moléculas de classe I e II [8].

À medida que se vai conhecendo a complexidade do sistema imunológico e os mecanismos de rejeição, é possível buscar formas e estratégias que consigam bloqueá-la. Na rotina clínica, medicamentos com propriedades imunossupressoras são amplamente utilizados. A ciclosporina A e o FK506 bloqueiam a ativação de citocinas como IL-2, enquanto a azatioprina e ciclofosfamida inibem o crescimento de linfócitos. O sirolimo (rapamicina) age bloqueando o crescimento das células T em resposta a IL-2. Outra droga utilizada é o glicocorticóide que atua sobre as células T, ativando endonucleases que clivam o DNA, levando à morte por apoptose. Os medicamentos imunossupressores mais novos, como, por exemplo, o FK-506 (tacrolimus), são promissores, uma vez que aumentam a imunossupressão, reduzindo seus efeitos colaterais [9].

O tratamento com anticorpos contra o receptor de células T (TCR), administrados antes da realização do transplante, é uma entre as várias estratégias pesquisadas para bloquear a rejeição [10]. Estes produzem um estado de hipo-responsividade aos aloenxertos cardíacos, com a diminuição intra-enxerto de citocinas de tipo Th1 (IL-2 e IFN-g) e conseqüente aumento de citocinas de tipo Th2. A sobrevivência mais longa está associada à inibição da atividade pró-inflamatória Th1. Também nesta linha, o tratamento com anticorpos anti-CD3 e/ou especificamente anti-CD4 também prolonga a sobrevivência de aloenxertos, uma vez que diminui a população de linfócitos T, inibindo o infiltrado no enxerto [11-13].

Outro caminho muito promissor no bloqueio da rejeição de transplantes é a utilização de estratégias que procuram modular as moléculas do microambiente para onde migram os linfócitos efetores. O tratamento antilaminina nos aloenxertos cardíacos, em ratos, promoveu diminuição do acúmulo de linfócitos nos linfonodos de drenagem, bem como no coração transplantado [14], mesmo nos transplantes cardíacos alogênicos avasculares de camundongos [15].

Ehrlich [16], em 1900, demonstrou que o sistema imunológico não reage aos seus próprios constituintes, mas é capaz de reagir com coisas estranhas a ele. Era preciso, então, explicar o fato de que em condições normais o sistema imunológico não gera auto-agressões, levando a doenças, enquanto é capaz de reagir com o que vem de fora.

Ao contrário do que comumente pensamos, a maior superfície de contato com o meio externo não é a pele, mas sim as mucosas, dentre estas, as do tubo digestivo, que apresenta uma área cerca de 300 a 600 vezes maior que a da pele [17]. Esta porta de entrada representa a maior fonte de perturbação da atividade imunológica no organismo. No entanto, na maioria das vezes, a penetração de antígenos por essa via não determina as respostas imunológicas classicamente esperadas, causando, ao contrário, o fenômeno denominado "tolerância oral".

Embora não reconhecida como tal, a tolerância oral foi o primeiro fenômeno com bases imunológicas a aparecer na literatura após o relato de Jenner, em 1798, sobre a vacinação antivariólica. Embora tenha sido descrito diversas vezes desde o início do século XIX, para diversas proteínas como para a proteína do leite, do milho e do ovo, o fenômeno da tolerância oral tem sido sistematicamente esquecido ou negligenciado.

Parte das macromoléculas ingeridas é absorvida in natura pela mucosa, entrando em contato direto com os linfócitos intra-epiteliais e das placas de Peyer [18]. A rápida absorção de macromoléculas intactas para a circulação pode ser evidenciada tanto por métodos laboratoriais, como clinicamente, onde nas alergias alimentares levam a manifestações generalizadas, segundos a minutos após a ingestão do alimento alergênico. Existem evidências de que os organismos também se imunizam para agentes infecciosos através das mucosas como, por exemplo, para o vírus da poliomielite, na qual a vacinação por via oral mostrou-se eficaz [19].

Considerando-se os fatos relatados, será que poderíamos pensar em realizar transplantes cardíacos livres de drogas imunossupressoras, utilizando o mecanismo de tolerância oral? Sabíamos que o caminho era longo, porém poderíamos começar dando um pequeno passo e, para isso, pensamos em usar um modelo experimental de implante de coração em camundongo, segundo o modelo proposto por Fulmer et al. [20], técnica exeqüível e que não requer grande sofisticação [21]. Assim, o objetivo geral foi induzir a tolerância oral e realizar o transplante, com ou sem estimulação concomitante com o antígeno para o qual foi tolerizado e verificar se os efeitos indiretos da tolerância oral impedem ou retardam a rejeição de transplantes alogênicos de coração.

MÉTODO

Animais


Utilizamos camundongos isogênicos criados e mantidos no Núcleo de Animais de Laboratório, na Universidade Federal Fluminense (UFF), com ração e água ad libitum. Os receptores foram adultos com 6-8 semanas, do sexo masculino, das linhagens C3H/HeJ e C57Bl/6J e os doadores BALB/C recém-natos com até 24h de vida.

Cada linhagem de camundongos foi dividida em quatro subgrupos (Tabela 1) com n=5 (20 C3H/HeJ e 20 C57Bl/6J). As manipulações animal e imunoquímica foram realizadas no laboratório de Imunologia Gastrintestinal do Departamento de Imunobiologia da UFF. As técnicas histológicas foram realizadas no Departamento de Patologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Proteínas do amendoim

As proteínas foram extraídas de acordo com a metodologia desenvolvida para extração de proteínas do amendoim [19].

Em resumo, as sementes descascadas foram moídas em moedor elétrico, tipo de café. O material resultante foi colocado em tubo de 15ml e suspenso em tampão de extração (tampão borato pH 9,7), na proporção de 1:10 p/v, sob agitação por inversão, durante 30 minutos, à temperatura ambiente. A seguir, o material foi centrifugado à 5º C e 3000 rpm, durante 30 minutos e o sobrenadante, recolhido. A concentração de proteínas foi determinada pela técnica de Lowrey et al. [22].

Indução de tolerância oral com sementes in natura

Os animais receberam no cocho, junto com a ração, o amendoim, por um período de 7 a 10 dias.

Imunizações com extratos brutos de amendoim

Na imunização primária, cada animal recebeu 100ìg da proteína do amendoim mais 1mg de Al(OH)3 (adjuvante) em um volume final de 200ìl por via subcutânea no dorso. Após 21-28 dias, os animais receberam a imunização secundária pela mesma via e concentração protéica, sem acréscimo do adjuvante.

Sangrias

Foram retirados 200 ìl de sangue do plexo retro-orbitário após 7 dias de exposição aos antígenos por via parenteral. O sangue foi diluído a 10% v/v em solução salina. Após a retração dos coágulos, foi centrifugado 1500rpm, os soros recolhidos e guardados a -20ºC até serem analisados.

Avaliação dos títulos de anticorpos antiproteínas das sementes

Para a avaliação dos títulos de anticorpos antiproteínas do amendoim foi utilizada a técnica de ELISA. Placas de microtitulação foram cobertas com 4ìg de proteína em 100 ìl de PBS por poço e incubados durante 12-18 horas, à 4ºC. Em seguida, foram lavadas duas vezes com uma solução de PBS-Tween 0,05% e cobertas com PBS-gelatina durante 1 hora, à temperatura ambiente. Os soros a serem testados foram diluídos e incubados por 3h. Após lavagem com PBS-Tween, foi adicionado o anticorpo de cabra anti-cadeia ã de camundongo, conjugado com peroxidase. Após nova incubação de 3h, as placas foram lavadas e foram adicionados 50ìl da solução do substrato (OPD - 4mg, H2O2 - 4ìl, em 10ml de tampão citrato fosfato). A reação foi interrompida após 20 minutos com uma solução 0,1M de H2SO4. As densidades ópticas foram lidas a 492nm, em um leitor de ELISA (Anthos 2010). A análise dos resultados foi realizada pela comparação do somatório das densidades ópticas de cada soro, denominado de ELISA*.

Transplante de coração no lobo auricular de camundongos

Sob anestesia, os animais foram submetidos à anti-sepsia com álcool iodado, em sentido distal à base da orelha. Em seguida, com uma lâmina de bisturi, realizou-se uma pequena incisão anterior, entre a transição da pele com a cartilagem de lobo auricular, poupando-se os vasos auriculares principais. A partir do local de incisão, confeccionou-se um túnel subcutâneo até o sítio de implantação do enxerto, com auxílio de uma pinça de dissecção.

O camundongo recém-nascido doador foi acondicionado em recipiente de isopor, contendo gelo seco e, após tornar-se cianótico, foi submetido a uma incisão transversal e longitudinal na região tóraco-abdominal anterior, ao que se seguia a exposição do coração por leve compressão do corpo do animal. O coração foi retirado com uma pinça de ponta delicada, tomando-se o cuidado de não perfurá-lo. Este foi transferido para uma placa de Petri, contendo gaze embebida em soro fisiológico. Finalmente, os enxertos cardíacos foram conduzidos por uma pinça e introduzidos através do túnel confeccionado sob a pele da orelha do camundongo. Para concluir, o local de incisão foi brevemente comprimido por uma pinça anatômica, sendo o fechamento realizado por segunda intenção.

Coleta do transplante

Realizada no 15º dia pós-transplante. O animal foi sacrificado, subtendo-o à anestesia profunda. Imediatamente após a coleta, a orelha foi colocada em um cassete apropriado para histologia e submerso em solução de líquido de Holland por 24h e iniciada a inclusão em parafina. Os tecidos fixados e cortados foram corados por hematoxilina-eosina (HE).

Avaliação histológica

Cada lâmina foi avaliada em duas oportunidades com intervalo de uma semana, com vista panorâmica, aumento de 100x e 400x, anotando-se as características em cada leitura das lâminas, visando diminuir a subjetividade. Cada lâmina foi lida levando-se em consideração quatro parâmetros: nódulo, infiltrado periférico, infiltrado central ou massa e tecido de granulação.

· Nódulo - tamanho do espécime, que se refere ao tamanho do enxerto. O diâmetro foi medido em milímetros.

· Infiltrado periférico - A intensidade da celularidade na periferia dos enxertos foi medida de forma subjetiva em cruzes de 0 a 4 (zero a quatro cruzes), onde o zero equivale a nenhuma infiltração e 4, à infiltração máxima (0 a 4+).

· Infiltrado central - A intensidade do infiltrado linfocitário no enxerto propriamente dito também foi medida de forma subjetiva de zero a quatro cruzes (0 a 4+), utilizando o mesmo critério.

· Tecido de granulação - é o parâmetro referente à substituição do enxerto destruído por tecido de granulação (este é um estágio mais avançado e agressivo da rejeição). Da mesma forma, a medição foi subjetiva de zero a quatro cruzes (0 a 4+), onde zero equivale à ausência de granulação e 4, à granulação máxima.

Avaliação estatística

Foi utilizado o teste estatístico de Tukey com significância mínima de p<0,05.

RESULTADOS

Clinicamente não observamos diferenças marcantes entre os grupos de cada linhagem, no entanto, após o procedimento cirúrgico do transplante nas orelhas, os camundongos da linhagem C57BI/6J ficaram mais agitados e sensíveis à manipulação do que os animais da linhagem C3H/HeJ, e assim permaneceram até serem sacrificados.

Tolerização e imunização com antígenos do amendoim

A Figura 1 mostra que os animais imunes apresentaram títulos de anticorpos anti-amendoim significativamente mais elevados que os controles normais e tolerantes. Os animais C57Bl/6J que receberam amendoim na dieta ad libitum, antes das imunizações, apresentam títulos de anticorpos específicos para o amendoim significativamente menores do que aqueles que foram imunizados e que não comeram o amendoim, mas sem diferença significativa para os animais normais. Da mesma forma, os animais C3H/HeJ que receberam amendoim na dieta ad libitum, antes das imunizações, apresentam títulos de anticorpos específicos para o amendoim significativamente mais baixos do que aqueles que foram imunizados e que não comeram o amendoim. Diferente dos C57Bl/6J, há diferença significativa dos animais tolerantes para os animais normais.

Avaliação histológica

O infiltrado periférico é sempre misto, composto de células polimorfonucleares, macrófagos e mononucleares. A Figura 2 demonstra que camundongos C3H/HeJ do grupo tolerante apresentam um infiltrado periférico significativamente menor (p<0,001) do que os animais imunes e normais, bem como menos tecido de granulação ao redor do enxerto, sugerindo que o enxerto demorou mais a ser invadido pelas células da resposta imunitária e, portanto, o processo de rejeição se instalou de forma mais tardia.

Quanto ao infiltrado central, o grupo de camundongos C3H/HeJ, tolerantes, foi menos evidente na massa central, indicando que o enxerto foi protegido e a rejeição demorou em aparecer. Este achado sugere que o enxerto estava em um estágio mais conservado, corroborando com os dados anteriores de que animais tolerantes ao amendoim e que foram imunizados concomitantemente à realização do enxerto apresentam mecanismos protetores do enxerto.

Quanto aos enxertos realizados nos camundongos C57Bl/6J, a Figura 3 demonstra que os nódulos de enxerto e os infiltrados periféricos se mantiveram com tamanhos aproximados entre os grupos tolerantes, normais e imunes, portanto, sem diferenças significativas. O infiltrado central foi mais evidente, sugerindo que, ao contrário dos animais C3H/HeJ, o enxerto não foi protegido do processo de rejeição, portanto não diferindo dos animais imunes. Nesta figura, o que é diferente do esperado é o grupo normal que, sem contato algum com a imunização com amendoim, apresentou menos tecido de granulação no enxerto, demonstrando que o enxerto estava em um estágio mais conservado do que nos demais grupos, sugerindo que a tolerância nesta linhagem não teve papel protetor como na linhagem C3H/HeJ.

Nas Figuras 4 e 5, analisamos o tecido de granulação nas linhagens de camundongos C3H/HeJ e C57Bl/6J. Nas duas linhagens, os animais tolerantes apresentaram menor quantidade de tecido de granulação que os demais grupos. O grupo tolerante C3H/HeJ apresentou menor infiltrado periférico, infiltrado central e tecido de granulação, quando comparado aos outros grupos da mesma linhagem e também em comparação aos camundongos da linhagem C57Bl/6J. Este fato certamente se explica por uma menor reação ao enxerto no grupo de tolerantes C3H/HeJ. No grupo de tolerantes C57Bl/6J, também poderíamos esperar esta resposta, porém a mesma não foi evidenciada. Cabe ressaltar que o tecido de granulação nos animais tolerantes é menor que nos grupos imunes e normais e o tecido central é maior. O fato de terem menos tecido de granulação, que é o estágio mais avançado de rejeição, sugere melhor grau de proteção. Se os espécimes fossem obtidos com menos tempo (10-12 dias), talvez fosse mais evidente esta diferença.


Fig. 1 - Título de anticorpos anti-amendoim de animais C3H/HeJ g e C57Bl/6 c após o procedimento de tolerização (tolerante), e imunização (imune) e controles normais (normal)






Fig.2 - Corte histológico de coração de doador em orelha de camundongos C3H/HeJ, tolerantes (A), imunes (B) e normais (C), após 15 dias de transplante, observado em aumento de 2,5x


Fig. 3 - Corte histológico de coração de doador em orelha de camundongos tolerantes (a), imunes(b) e normais(c), C57Bl/6J, sacrificados 15 dias após o transplante em aumento de 2,5x


Fig. 4 - Comparação de todos os parâmetros histológicos avaliados após 15 dias de enxerto alogênico de coração neonatal (BALB/c) para a orelha de camundongos C57Bl/6J adultos


Fig. 5 - Comparação de todos os parâmetros histológicos avaliados após 15 dias de enxerto alogênico de átrio neonatal (BALB/c) para a orelha de camundongos C3H/HeJ adultos


DISCUSSÃO

O transplante de tecidos para substituir órgãos doentes é, atualmente, uma importante terapia médica. O transplante ortotópico do coração representa um procedimento rotineiro no tratamento da insuficiência cardíaca terminal. Atualmente, três mil transplantes são realizados a cada ano no mundo. A sobrevida do receptor após o transplante cardíaco é cerca de 80% em um ano e 65% em cinco anos. Na média, a sobrevida tem sido estimada em 8,5 anos e, quando calculada para os receptores que permanecem vivos ao final do primeiro ano, atinge onze anos [23].

Nesse experimento, ao fazermos aloenxerto de coração de camundongo de uma linhagem para outra, queremos contribuir para que este sonho se realize no futuro com melhor sobrevida que os já relatados. Aqui estão incluídos o transplante, a rejeição e a tolerância, tudo isto no meio do complexo inteligente e ainda não bem compreendido sistema imunológico.

Consideramos a tolerância a tecidos próprios e não-próprios como aspectos do mesmo mecanismo básico, que consiste na indução direta de tolerância na periferia, por deleção, anergia ou ignorância imunológica (neste último, as células T e antígenos coexistem sem se afetarem mutuamente). Finalmente, existem mecanismos que envolvem as interações entre os vários tipos de células T regulatórias.

Primeiramente falaremos sobre a tolerância. Como o nome indica, tolerar é aceitar ou incluir algo como próprio. No sistema imunológico, há a tolerância central que é estabelecida durante o desenvolvimento dos linfócitos nos órgãos linfóides centrais, durante o processo de desenvolvimento ou maturação e a tolerância periférica, que é adquirida pelos linfócitos maduros, já nos órgãos periféricos. Existe, ainda, a tolerância aos antígenos que entram no organismo pelas mucosas. Esta forma de tolerância é conhecida por tolerância oral.

Optamos por trabalhar com a tolerância oral na tentativa de atingir o objetivo de realizar transplantes sem utilização de drogas imunossupressoras. Dos três grupos de camundongos, apenas os animais que ingeriram amendoim antes da imunização se tornaram tolerantes. Estado que foi constatado pela mensuração dos anticorpos por ELISA, onde o título menor de anticorpos foi estatisticamente significante, quando comparado aos demais grupos. Este fenômeno já foi demonstrado claramente na linha de pesquisa de vários investigadores, como Teixeira [19].

Quando expandimos este experimento para os animais de outras linhagens, este fenômeno se repete se comparamos com animais da mesma linhagem que foram imunizados, mas não tiveram a exposição oral prévia. No entanto, observamos uma diferença importante na concentração de anticorpos entre as linhagens. Devemos ressaltar que existe diferença nos títulos de anticorpos entre as linhagens de camundongos C57BL/6J e C3H/HeJ, sendo que os últimos apresentam títulos mais altos de anticorpos de modo generalizado.

Restava agora saber se esta tolerância podia de alguma forma influenciar no sistema imunológico. Então, o desafio deste trabalho consistiu em fazer o transplante avascular alogênico de coração, na orelha de camundongo, nos grupos previamente tolerizados, medidos pelo grau de rejeição que os diferentes grupos apresentaram.

Nos experimentos realizados com camundongos da linhagem C57Bl/6J, vimos que embora não haja muita diferença nos parâmetros de infiltrado periférico e central, houve uma diferença quanto ao tecido de granulação que, de certa forma, traduz uma etapa mais avançada de rejeição e, neste caso, o grupo tolerante é menos afetado. Talvez se o sacrifício dos animais tivesse sido feito no oitavo ou décimo dia, esta diferença se confirmasse no infiltrado central e periférico também. Estamos em fase de reelaboração do experimento na tentativa de responder a esta e a outras perguntas.

Uma das explicações para que camundongos C3H/HEJ apresentem títulos de anticorpos mais elevados para as proteínas das sementes, mesmo nos animais tolerantes, pode ser o fato destes animais apresentarem alterações genéticas (não apresentam o receptor Toll-4, portanto, não respondem ao LPS - lipopolissacarídeo). Uma segunda explicação para os altos níveis de anticorpos vistos nestes animais pode ser aquela proposta por Caramalho et al. [24], que demonstraram que as células T CD4 regulatórias são capazes de controlar negativamente as reações inflamatórias estimuladas por bactérias comensais e patógenos oportunistas. Este mecanismo regulatório pode se dar através da ativação de moléculas pró-inflamatórias do próprio sistema imunitário ou diretamente pelos produtos bacterianos.

Caramalho et al. [24] testaram a segunda hipótese, ou seja, a hipótese de que a população de linfócitos regulatórios é ativada por receptores de linha germinativa, entre estes, os receptores Toll-like (TLR), uma das moléculas reconhecedoras de padrões moleculares, típicas da superfície destes microorganismos. Estes autores demonstraram que a população linfocitária que exerce a função regulatória, as células T CD45RB(low) CD25(+), expressa seletivamente os TLR-4, -5, -7, e -8 e, quando expostas ao ligante de TLR-4, o lipopolissacarídeo (LPS), ocorre uma regulação positiva da expressão de várias moléculas de ativação celular, além de aumentar sua capacidade proliferativa e de sobrevida. Esta proliferação ocorre de forma independente da célula apresentadora de antígenos, mas é intensificada pela estimulação do receptor para antígenos (TCR) e estimulação pela IL-2. Outro ponto importante demonstrado por Caramalho et al. [24] é que o tratamento de células T CD4(+) CD25(+) com LPS aumenta em uma ordem de grandeza sua eficiência supressora. Esta atividade supressora quando testada ex-vivo não é encontrada na subpopulação CD4(+) CD45RB(low) CD25( ). Outro achado interessante deste grupo é o fato de que células T regulatórias ativadas com LPS controlam eficientemente células T naive nas doenças consumptivas. Assim, estes autores demonstram que linfócitos T regulatórios podem ser diretamente ativados por produtos bacterianos pró-inflamatórios, contribuindo, dessa maneira, para o controle do processo inflamatório e retorno ao estado de homeostasia de cada tecido.

Nossa hipótese com relação aos camundongos C3H/HeJ é de que a não ativação da população de células T regulatórias pela falta do TLR-4 seja responsável pelos altos níveis de imunoglobulinas séricas, tanto nos animais tolerantes como imunes. Os resultados preliminares indicam que animais tolerantes apresentam mecanismos de regulação alternativos aos classicamente descritos.

As respostas imunes são barreiras importantes contra a eficácia dos transplantes de tecidos, destruindo-os por meio de uma resposta imune adaptativa a proteínas estranhas. Essas respostas podem ser mediadas por células TCD8 citotóxicas, por células Th1 ou por ambas.

As células T efetoras alorreativas, que se ligam diretamente às moléculas alogênicas MHC de classe 1 em transplante de órgãos, são uma causa importante da rejeição ao enxerto. Isso é denominado alorreconhecimento direto. Antes que possam causar rejeição, as células T virgens alorreativas devem ser ativadas por células apresentadoras de antígenos (APCs), que apresentam as moléculas alogênicas e possuem atividades co-estimulatórias.

Um segundo mecanismo de reconhecimento do aloenxerto, que pode levar à rejeição do mesmo, é a captação de proteínas alogênicas pelas células apresentadoras de antígenos e sua apresentação às células T por moléculas do próprio MHC. Isto é reconhecido como alorreconhecimento indireto.

Estas respostas podem levar à rejeição. Como não podemos suprimir especificamente a resposta ao enxerto, sem comprometer as defesas do hospedeiro, a maioria dos transplantados requer imunossupressão generalizada, o que pode causar toxicidade significativa e aumentar o risco de neoplasias e infecção. O feto é um aloenxerto natural que deve ser aceito, e sua função é quase sempre para a sobrevivência da espécie. A tolerância ao feto pode ser a chave para a tolerância específica aos enxertos ou pode ser um caso especial não aplicável à terapia de substituição de órgãos.

No transplante alogênico do coração, assim como em outros órgãos, os antígenos HLA são os principais indutores da resposta imune contra o enxerto. Estas moléculas desempenham um papel fundamental na resposta imunitária, sendo as responsáveis pela apresentação de peptídeos antigênicos aos linfócitos.

O conceito atual de ativação de linfócitos é baseado no modelo de "dois sinais", proposto originalmente por Bretscher & Cohn [25] em relação à síntese de anticorpos. Em seguida, esta teoria foi adaptada para a ativação de células T. O primeiro sinal é desencadeado pela ligação do receptor de células T (TCR, de T Cell receptor) ao complexo MHC-peptídeo antigênico que participa na transdução do primeiro sinal. O segundo sinal, ou sinal co-estimulatório é desencadeado pela interação entre moléculas da superfície das APCs e seus ligantes na superfície de células T.

Os linfócitos T são classificados em dois subtipos, de acordo com a expressão das moléculas CD4 ou CD8, na superfície celular. Aproximadamente 65% das células Táb+ expressam CD4 e 35% expressam CD8. As respostas das células TCD4+ são restritas às moléculas do MHC de classe II, enquanto as células TCD8+ reconhecem antígenos no contexto de MHC de classe I. Estas se diferenciam em células efetoras citotóxicas (CTL).

A rejeição crônica do aloenxerto cardíaco é responsável por 23 a 30% das mortes após o primeiro ano de transplante e é caracterizada por uma resposta difusa e proliferativa da íntima das artérias do órgão transplantado. A rejeição crônica parece ter início após o alorreconhecimento do endotélio do enxerto, com subseqüente infiltração de linfócitos e produção de citocinas, quimiocinas e fatores de crescimento. Em camundongos CD4- ou em camundongos atímicos (nude), não há lesões da íntima dos vasos em corações transplantados, demonstrando, assim, que as células CD4 têm a capacidade de promover sozinhas a rejeição ao enxerto cardíaco [26].

Todas estas pesquisas e descobertas nos fazem compreender em parte quão misterioso e complexo são os mecanismos de defesa e rejeição. Certamente no grupo tolerizado, especialmente nos camundongos C3H/HeJ se conseguiu retardar o mecanismo de rejeição. Nestes camundongos, que foram alimentados com semente de amendoim antes das imunizações sistêmicas, observa-se a tolerância. Este grupo é o mais interessante porque nos mostra mais claramente que o mecanismo de rejeição foi mais leve que nos grupos imunes e normais. Esses resultados mostram que existem muitos caminhos para bloquear a resposta imunológica. O experimento é simples e não temos autoridade para falar em que nível o sistema foi temporariamente bloqueado, já que existem várias maneiras para se desenvolver a rejeição. Se a rejeição ocorreu por via direta ou indireta, se foi em nível de células CD4 ou CD8, certamente estamos falando em vias de especulações teóricas. Os autores concordam que este é um mar aberto para este tipo de pesquisa.

Assim, podemos concluir que embora não houvesse preservação total do enxerto, a tolerância oral influenciou na capacidade de reagir aos componentes externos, neste caso, o enxerto alogênico. Na revisão bibliográfica, não encontramos estudos sobre tolerância oral e transplante. Isto nos permite dizer que nosso trabalho é original, mesmo considerando este pequeno experimento.

Com respeito à técnica, podemos afirmar o que outros autores já constataram que é uma técnica simples e que pode ser reproduzida.

CONCLUSÕES

Podemos concluir com este trabalho que, embora não de forma homogênea, a tolerância oral interfere nos mecanismos de rejeição de corações alogênicos transplantados de forma ectópica em murinos, sugerindo um papel importante para as células T regulatórias características do processo de tolerância.

Article receive on quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

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