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ARTIGO ORIGINAL

Endarterectomia de carótida em paciente acordado

Paulo César SANTOSI; Hélio Antônio FabriII; Cláudio Ribeiro da CUNHAIII; Carlos Alberto da Cunha MARTINSIV; Jullyanna Sabrysna Morais SHINOSAKIV; Adriano Silva NEVESVI; Olair Alves de QUEIROZVII; Alexandre Menezes RODRIGUESVIII

DOI: 10.1590/S0102-76382006000100012

RESUMO

Objetivo: Avaliar a morbidade e mortalidade da endarterectomia de carótida realizada sob bloqueio cervical regional, tendo como variáveis o tempo cirúrgico, uso de shunt, conversão para anestesia geral, complicações cirúrgicas, tempo de permanência dos pacientes na unidade de tratamento intensivo (UTI) e no hospital, e evolução dos pacientes durante um ano. Método: Durante o período de junho de 1998 a janeiro de 2004, foram realizadas 67 operações em 61 pacientes, com 70% ou mais de estenose de carótida interna, diagnosticada por Doppler e confirmada por angiografia carotídea. A monitorização cerebral intra-operatória consistiu na análise do nível de consciência e da atividade motora dos pacientes. A média de idade dos pacientes foi 69,7 anos. Quanto às doenças concomitantes, 45 (47%) eram hipertensos; 21 (22%), coronariopatas; 17 (18%), diabéticos; 12 (13%), pneumopatas. Resultados: Houve três (4,48%) casos de doença carotídea bilateral, sendo a operação realizada em dois tempos. O tempo médio de operação foi de 120 minutos. Foi necessário uso de shunt em seis (8,95%) casos e conversão para anestesia geral em dois (2,98%). Dois (2,98%) pacientes apresentaram confusão mental no pós-operatório e um (1,49%) apresentou infecção da ferida operatória. Ocorreu reestenose de carótida em três (4,48%) casos. Os tempos médios de permanência na UTI e no hospital foram, respectivamente, 1,34 e 4,20 dias. Não houve morte, acidente vascular cerebral ou infarto agudo do miocárdio. Conclusão: A endarterectomia de carótida com o paciente acordado é uma boa alternativa para pacientes selecionados de alto risco cirúrgico para anestesia geral.

ABSTRACT

Objective: To evaluate morbidity and mortality of carotid endarterectomy performed under regional cervical block, taking into account duration of surgery, use of shunt, conversion to general anesthesia, surgical complications, stay of patients inthe intensive care unit (ICU) and in the hospital, and patients' evolution over one year. Methods: From June 1998 to January 2004, 67 operations were performed in 61 patients, with 70% or greater internal carotid stenosis, diagnosed by Doppler and confirmed by carotid angiography. Neurologic monitoring consisted of continuous assessment of alertness and motor activity of patients during the operation. The mean age was 69.7 years old. Regarding concomitant pathologies, 45 (47%) had hipertension; 21 (22%), coronary artery disease; 17 (18%), diabetes; 12 (13%), pneumopathy. Results: There were three (4.48%) cases of bilateral carotid disease, for which surgery was performed at different times. The mean duration of surgery was 120 minutes. The use of a shunt was necessary in six (8.95%) cases and to convert to general anesthesia in two (2.98%). Two (2.98%) patients evolved with mental confusion after surgery and one (1.49%) presented infection of surgical site. Restenosis occurred in three (4.48%) cases. The mean times of stay in the ICU and hospital were 1.34 and 4.20 days, respectively. There were no deaths, strokes or acute myocardial infarctions. Conclusion: Carotid endarterectomy with conscious patient is a good alternative for selected patients at high surgical risk for general anesthesia.
INTRODUÇÃO

Desde a realização bem sucedida, em 1953, por DeBakey [1], a endarterectomia tornou-se o tratamento de eleição para pacientes portadores de estenose de artéria carótida, podendo ser realizada com segurança e baixas taxas de morbi-mortalidade em pacientes de alto risco [2,3].

Os pacientes com doença aterosclerótica carotídea são, majoritariamente, idosos e portadores de várias comorbidades associadas, fato que limita o tratamento cirúrgico, uma vez que eles são submetidos à anestesia geral (AG), à monitoração invasiva e a todas as suas conseqüências. Desse modo, a endarterectomia de artéria carótida (EAC) sob bloqueio cervical regional figura como uma intervenção "minimamente invasiva", uma vez que a menor perda sangüínea e o tempo relativamente curto de operação interferem pouco nos mecanismos homeostáticos do paciente [4,5].

Baseados nisso, avaliamos, independentemente da idade e do risco cirúrgico, o tempo de operação, a necessidade do uso de shunt intra-operatório, a taxa de conversão para AG, as complicações cirúrgicas, o tempo de permanência na unidade de tratamento intensivo (UTI) e no hospital, e evolução durante um ano de seguimento dos pacientes submetidos à EAC, sob bloqueio cervical regional, no nosso serviço.

MÉTODO

O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética das duas instituições envolvidas.


Foram realizadas 67 EAC com bloqueio cervical regional em 61 pacientes, no período de junho de 1998 a janeiro de 2004. Todos os pacientes apresentavam 70% ou mais de estenose de carótida interna, diagnosticada por Doppler e confirmada por angiografia.

Pacientes

A idade variou de 47 a 97 anos, com média de 69,7 anos; sendo 10 (16,40%) octogenários e 2 (3,28%) nonagenários. Os demais dados referentes ao perfil demográfico e à sintomatologia pré-operatória estão demonstrados na Tabela 1. Quanto às comorbidades, 45 pacientes eram hipertensos; 17, diabéticos; 21, coronariopatas, e 12 eram portadores de doença pulmonar obstrutiva crônica (Figura 1).

Técnica anestésica

A técnica anestésica empregada foi a de Labat [6]. A cabeça do paciente em decúbito dorsal foi girada lateralmente e foram empregados como pontos de referência a ponta do processo mastóide, o processo transverso da 5ª vértebra cervical e o tubérculo anterior da 6ª vértebra cervical, para que pudessem ser localizadas as extremidades dos processos transversos das vértebras C2 a C4. Lateralmente a esses processos, foram feitos botões intradérmicos de 5mL de solução de marcaína a 0,5%, seguidos de infiltração subcutânea de 15mL adicionais ao longo da borda posterior do músculo esternocleidomastóideo.

Técnica operatória

Foi realizada incisão cervical longitudinal paralela à borda anterior do músculo esternocleidomastóideo; as artérias carótidas comum, interna e externa, foram individualizadas e, após heparinização, foram ocluídas e observado o estado neurológico do paciente. Em seguida, realizou-se a remoção da placa por arteriotomia, a qual foi fechada com pericárdio bovino.

A monitorização neurológica foi feita por meio de observação da função motora dos membros contralaterais e do nível de consciência, por meio da realização de perguntas básicas iniciadas antes da operação e repetidas durante o curso operatório, sendo que o shunt foi colocado quando houve déficit motor e/ou queda do nível de consciência.

Após a operação, os pacientes foram encaminhados à UTI. Em seguida à alta hospitalar, os pacientes foram avaliados pelo próprio cirurgião, 30 dias e 1 ano após o procedimento operatório, e realizado duplex scan de carótidas.

RESULTADOS

O tempo médio de operação foi de 120 minutos, e o tempo médio de oclusão da carótida interna foi de 30 minutos.

A operação foi realizada à esquerda em 39(58,20%) casos e, à direita, em 27 (40,30%). Os pacientes acometidos por doença carotídea bilateral foram submetidos à endarterectomia bilateral em dois tempos, sendo primeiramente operado o lado sintomático. Treze (19,40%) pacientes necessitaram de cirurgia de revascularização do miocárdio, a qual foi realizada após o tratamento carotídeo.

Foi necessária a conversão para AG em dois casos, devido à agitação e não colaboração dos pacientes e, em seis casos, foi necessária a colocação de shunt intra-luminal, pois os pacientes apresentaram queda do nível de consciência e déficits neurológicos. Não houve morte, acidente vascular cerebral (AVC) ou infarto agudo do miocárdio (IAM) peri-operatórios.

No pós-operatório, foram observados episódios de confusão mental em dois pacientes e um caso de infecção da ferida operatória, que foi tratada com antibioticoterapia oral e evoluiu com boa resolução.

No seguimento, foi detectada reestenose de carótida por trombose em três casos, sendo que dois foram tratados com nova endarterectomia, e um, em que ocorreu trombose bilateral, teve um lado submetido a uma nova operação e o outro tratado com angioplastia e colocação de stent. Não houve morte, AVC ou IAM durante 1 ano de acompanhamento. As complicações ocorridas estão resumidas na Tabela 2.

Os tempos médios de permanência na UTI e de internação foram, respectivamente, 1,34 dia (variação de 1 a 5 dias) e 4,20 dias (variação de 2 a 15 dias).







DISCUSSÃO

Nosso critério de inclusão dos pacientes baseou-se em três estudos multicêntricos que demonstraram a eficácia e a durabilidade da reconstrução cirúrgica da oclusão aterosclerótica carotídea igual ou maior que 70% na profilaxia de AVC [7-9]. No NASCET [7], para estenoses entre 70% e 99%, a taxa de AVC foi 9% no grupo em que foi realizada endarterectomia e 26% no grupo que recebeu tratamento clínico, com diminuição do risco absoluto para AVC de 17±3,5%. No ECST [8], para os mesmos valores de estenose, o grupo tratado com endarterectomia apresentou taxa de AVC (2,8%) cerca de 6 vezes menor, quando comparado ao grupo tratado clinicamente (16,8%). No ACAS [9], para pacientes assintomáticos com grau de estenose maior que 60%, 5,1% dos tratados com endarterectomia apresentaram AVC, enquanto que este índice foi de 11% no grupo tratado clinicamente.

Os parâmetros avaliados neste estudo foram selecionados com o intuito de verificar algumas das possíveis vantagens da EAC sob anestesia regional (AR) em relação à AG, já arroladas por diversos autores: monitorização neurológica mais eficiente, com redução da necessidade de shunt intra-operatório; menor risco conseqüente à AG na população de alto risco; maior estabilidade da pressão arterial, com menor uso de terapia anti-hipertensiva endovenosa; menor tempo de operação; menor tempo de permanência na UTI; alta hospitalar mais precoce; menores índices de AVC peri-operatório e complicação cardiovascular[4,5,10-14].

O bloqueio cervical permitiu o acesso contínuo ao estado neurológico do paciente no transcorrer da operação. Em concordância com Harbaugh e Pikus [5], que relatam ser a operação melhor tolerada pelos pacientes plenamente conscientes do que pelos sedados, procuramos manter o mínimo de sedação possível, para que não fosse prejudicada a avaliação do nível de consciência. É provável que a instabilidade neurológica seja o preditor de maior acurácia para a possibilidade de ocorrência de AVC após EAC do que qualquer outra técnica já utilizada, como eletroencefalografia (EEG), medida do fluxo sangüíneo cerebral regional, Doppler transcraniano, espectroscopia infravermelha e medida de pressão retrógrada da carótida interna [4].

Uma decorrência direta da monitorização neurológica mais eficaz na EAC com o paciente acordado foi a possibilidade do uso seletivo de shunt, uma vez que são vários os riscos envolvidos na sua utilização [10,15]. Devido à dissecção endotelial do vaso, o shunt traz o risco de trauma grave da íntima nos pontos de inserção e maior probabilidade de trombose na área operada; também pode aumentar a dificuldade técnica do procedimento (visualização da placa), acarretando a ampliação da arteriotomia; pode, ainda, aumentar o risco de embolização gasosa e aterotrombótica, pela maior manipulação da artéria [12,16,17].

Apesar do uso de shunts eletivo com monitoração por EEG ser a prática provavelmente mais disseminada atualmente, ficando a monitoração baseada no estado neurológico do paciente sob AR em segundo plano, foi observado que os falsos-positivos e falsos-negativos não são incomuns na técnica de shunt baseada em EEG [18]. Além disso, a operação com o paciente acordado resultou em uso de shunt em 8,95% dos casos, valor este que se encontra em consonância com outros trabalhos. Para freqüência de uso de shunt em operações com AR vs AG, foram encontrados, respectivamente, os seguintes valores: 15% vs 67% [19]; 7,4% vs 17% [18]; 9% vs 39% [3]; 12% vs 52% [14]. Magnadottir et al. [4] usaram shunt em 6,1% casos operados sob AR, e os valores mais baixos foram registrados por Raso et al. [17], que empregaram shunt em 2,7% das operações com AR.

Neste estudo, não foi feita a análise formal da variabilidade hemodinâmica intra-operatória, mas foi registrado que apenas dois casos necessitaram do uso de aminas vasoativas. Em estudos que avaliaram as vantagens fisiológicas da EAC com AR para o fluxo sangüíneo cerebral, foram verificadas menores taxas de hipotensão intra-operatória em relação à operação com AG, 8% vs 40% [11], maior instabilidade hemodinâmica e necessidade de maior administração de medicação vasoativa no intra e no pós-operatório para o grupo em AG [13,14]. Também foi observado que 83% dos operados com AG e 75% dos submetidos à AR que tiveram complicações pós-operatórias haviam apresentado hipertensão peri-operatória grave [14].

Em um estudo comparativo das alterações eletroencefalográficas de pacientes submetidos à EAC sob AG ou sob AR, foi observado que a melhor preservação da circulação cerebral ipsilateral e a maior tolerância aos efeitos do pinçamento carotídeo na AR seriam resultado da própria técnica anestésica, o que elevaria a técnica de AR à condição de fator de proteção cerebral. Este efeito poderia ser devido à melhor estabilidade hemodinâmica, eliminação do uso de outras drogas anestésicas e preservação da auto-regulação intrínseca, que talvez esteja associada ao aumento da pressão sangüínea sistêmica intra-operatória e à ausência de bloqueio dos receptores de perfusão cerebral, fato que, especula-se, possa ocorrer na AG [18,19].

Breen e Park [20] reconheceram que as técnicas anestésicas, gerais ou regionais, têm influência na morbi-mortalidade dos pacientes, especialmente nos de alto risco, devendo a escolha da técnica estar vinculada às conseqüências ocasionadas. No caso das ECAs, os autores concluíram que os estudos não randomizados por eles analisados favorecem o bloqueio regional, em virtude da redução nas incidências de AVC, IAM e morte, porém alertaram quanto à necessidade de mais estudos randomizados para melhor avaliar as duas técnicas anestésicas.

No nosso estudo, não houve morte, AVC ou IAM peri ou pós-operatórios. Em uma série de 200 pacientes, Love e Hollyoak [3] também não registraram morte ou AVC até 30 dias de pós-operatório. Bowyer et al. [14] notaram incidência significativamente maior de AVC no grupo sob AG em relação à AR (5,3% vs 1,1%). Já Sternbach et al. [13] encontraram morbidades neurológicas semelhantes nos dois grupos, porém com menores taxas de IAM, falência cardíaca congestiva e arritmia ventricular para os submetidos à AR.

Pacientes submetidos à EAC são, freqüentemente, idosos e portadores de numerosas comorbidades. Portanto, deve haver a preocupação de que a operação seja minimamente invasiva, o que pode ser conseguido com a abordagem da AR. Magnadottir et al. [4] acreditam que os riscos não-neurológicos inerentes à AG e à monitoração invasiva podem ser maiores do que o risco do próprio procedimento cirúrgico para muitos pacientes. Esses autores analisaram 600 EAC em regime de AR e compararam as complicações entre portadores de fatores de risco pré-operatórios, como idade maior que 75 anos, diabete melito, insuficiência coronariana e oclusão de carótida interna contralateral, com pacientes sem esses fatores de risco, não encontrando maior morbi-mortalidade peri-operatórias para os primeiros. Pelo contrário, sugeriram que a AR seja uma técnica mais segura no concernente às complicações cardiopulmonares, principalmente para os pacientes de mais alto risco, podendo chegar a uma taxa de complicações não-neurológicas 13 vezes menor do que em pacientes submetidos à AG.

A EAC sob AR também se mostrou viável e eficaz em nosso estudo, sendo que apenas 2,98% dos pacientes requereram conversão para AG. Para Bowyer et al. [14], esse número foi de 4,8%, e para Love e Hollyoak [3] não houve necessidade de conversão.

O tempo de oclusão da carótida foi semelhante ao de outros trabalhos [4,17] e o tempo total de operação foi menor em relação às EAC realizadas sob AG no nosso serviço anteriormente, semelhante ao observado por outros autores [11,13,14]. O tempo médio de permanência na UTI foi 1,34 dia, sendo que a tendência é de não enviar os pacientes rotineiramente para a UTI, mas monitorá-los cuidadosamente na sala de recuperação e transferi-los para a UTI apenas quando hemodinamicamente instáveis [3,11]. O tempo médio de internação também foi curto, cerca de 4 dias, de acordo com os registros de outras publicações [13,14,17]. Esses resultados, somados à redução no uso de medicação anti-hipertensiva intravenosa e na utilização de shunt, proporcionam também uma redução de custos [11,14].

McCarthy et al. [21] desenvolveram e validaram um questionário que evidenciasse a opinião dos pacientes quanto a ansiedade, satisfação e tolerância, sendo comparadas as respostas dos que se submeteram à EAC sob AR e AG. Os resultados mostraram que os pacientes tiveram, no geral, uma experiência positiva em relação à EAC, independentemente da técnica anestésica empregada. Contudo, o quesito percepção de recuperação, que abrangeu a sensação do paciente quanto a náusea, angústia, dor, tempo de permanência e retorno às atividades habituais, pendeu significativamente em favor da AR.

CONCLUSÃO

A partir dos resultados satisfatórios obtidos nesta série quanto a complicações, uso de shunt, tempo de operação e de internação, concluímos que a EAC realizada com AR é uma técnica segura, eficaz, minimamente invasiva e viável para pacientes com estenoses carotídeas moderadas a graves, incluindo idosos e portadores de várias comorbidades.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos às equipes dos Hospitais Santa Catarina, Santa Genoveva e Hospital das Clínicas de Uberlândia, e à Liga de Cardiologia e Cirurgia Cardiovascular da Universidade Federal de Uberlândia, coordenada pelo Prof. Dr. Elmiro Santos Resende.

Article receive on sábado, 1 de outubro de 2005

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