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RELATO DE CASO

Correção da origem anômala de artéria coronária esquerda com insuficiência mitral e hemólise mecânica

José Alberto Caliani; Alessandra Amorim Machado; José Augusto Toledo Marinho; Luiz Carlos Simões; Odilon Nogueira Barbosa

DOI: 10.1590/S0102-76382004000400014

INTRODUÇÃO

A origem anômala da artéria coronária esquerda nascendo do tronco pulmonar é mais freqüente no seio valvar pulmonar póstero-esquerdo. Raramente o óstio coronário anormal situa-se em nível de outro seio pulmonar, quando ocorre é com maior freqüência no póstero-direito do que no anterior. Após um trajeto inicial de extensão variável, o tronco da artéria coronária se divide nas artérias descendente anterior e circunflexa. A artéria coronária direita é geralmente dilatada, ao passo que a esquerda é de calibre normal ou reduzido.

Em razão das pressões e saturações em oxigênio serem iguais na aorta e na artéria pulmonar durante a vida intra-uterina, esta anomalia não traz conseqüências ao feto. Após o nascimento, o ducto arterioso fecha e a resistência arterial pulmonar baixa progressivamente instalando hipoperfusão crônica do território miocárdico correspondente. A gravidade das conseqüências miocárdicas depende da relativa dominância das artérias coronárias direita e esquerda e da importância das colaterais que se desenvolvem entre ambas. Quando há dominância da artéria coronária esquerda, ocorre dilatação com hipocinesia do ventrículo esquerdo, freqüentemente associada à insuficiência mitral por isquemia dos músculos papilares. O quadro clínico revela-se por cardiomiopatia dilatada grave, cujo prognóstico depende de intervenção cirúrgica rápida.

O tratamento cirúrgico preconizado desta anomalia é o reimplante da artéria coronária na aorta e anuloplastia da valva mitral [1,2].

Neste relato descrevemos um caso de origem anômala de artéria coronária esquerda do tronco pulmonar associada a importante regurgitação mitral em criança de dois meses, operada com sucesso.

RELATO DO CASO

Criança do sexo feminino, 2 meses de vida, peso de 5430g, admitida com quadro de insuficiência cardíaca congestiva, PA 95x54 mmHg, FC de 140bpm, FR de 72irpm, hipocorada, hidratada, acianótica, apresentando abaulamento torácico médio-esternal, precórdio hiperdinâmico, sopro sistólico +++/6+ audível em borda esternal esquerda com irradiação para axila e dorso, pulsos de amplitude normal, ausculta pulmonar normal, hepatomegalia a 4cm do rebordo costal direito. Radiografia de tórax com área cardíaca aumentada, tronco de artéria pulmonar abaulado, aumento atrial e ventricular esquerdos. ECG sinusal, eixo a +40°, PR e QTC normais, sobrecarga atrial e ventricular esquerdas, onda Q de necrose em DI e AVL. Ecodopplercardiograma revelou sobrecarga importante de átrio e ventrículo esquerdos, déficit contrátil difuso de VE, insuficiência mitral grave, artéria coronária esquerda medindo 2 mm em sua origem, artéria coronária direita medindo 3 mm em sua origem e 2 mm a cerca de 1cm do óstio coronário direito.

O estudo cineangiocoronariográfico evidenciou artéria coronária esquerda com origem anômala do tronco da artéria pulmonar; artéria coronária direita dilatada com origem e trajetos normais conectando-se por colaterais à artéria coronária esquerda. Realizada cirurgia com abertura transversal do tronco pulmonar e localização do óstio da artéria coronária esquerda junto à sigmóidea póstero-direita. Desinserção do óstio com amplo retalho de parede pulmonar e abertura de orifício lateral na aorta ascendente. Reimplante do óstio no bordo posterior do orifício aórtico. A parede anterior foi confeccionada com retalho de pericárdio autólogo tratado em glutaraldeído a 2%. O tronco pulmonar é reconstituído com um segundo retalho de pericárdio autólogo com formato adaptado ao que foi previamente retirado (Figura 1).



Abertura do AE, constatada dilatação anular mitral importante com alongamento de cordas tendíneas e pequeno prolapso. Realizada plicatura das duas comissuras, segundo técnica proposta por REED et al. [6] com quatro fragmentos de pericárdio bovino. O esterno foi deixado aberto e fechado cinco dias após. A paciente evolui com anemia hemolítica no pós-operatório (icterícia progressiva e hematúria). Apresentou, no 9°dia de pós-operatório, Coombs direto positivo orientando-nos a uma hemólise imune por politransfusão, sendo transfundida a partir deste momento apenas com hemácias irradiadas.

Porém, a anemia hemolítica persistiu, o Coombs direto apresentou-se negativo em exames posteriores e a pesquisa de ferro urinário foi positiva, sendo então diagnosticada anemia hemolítica microangiopática por trauma mecânico - provável plastia da valva mitral. Realizado ecodopplercardiograma que evidenciou função ventricular esquerda normal, valva mitral com boa movimentação diastólica e jato da regurgitação projetando-se diretamente sobre o anel e uma das comissuras. Foi submetida à plastia valvar, com retirada dos fragmentos de pericárdio bovino e confecção de anuloplastia sem utilização de pericárdio. Recebeu alta hospitalar no 10° dia de pós-operatório.

No seguimento ambulatorial, a paciente encontra-se livre de sintomas, em grau funcional I (NYHA).

COMENTÁRIOS

Quando diagnosticada no neonato ou lactente, a origem anômala da artéria coronária esquerda nascendo do tronco pulmonar é geralmente grave e a função ventricular esquerda bastante comprometida [2].

O tratamento cirúrgico ideal para esta anomalia é a correção anatômica, que consiste na desinserção do óstio coronário esquerdo do tronco pulmonar e sua reimplantação na aorta ascendente [4]. Na maioria dos casos, o óstio situa-se no seio valvar pulmonar póstero-esquerdo, isto é, próximo à aorta ascendente. Nesta circunstância habitual, a transferência se faz sem dificuldade técnica.

Nos casos raros, como o deste relato, em que o óstio coronário nasce do tronco pulmonar a uma distância maior da aorta, a correção anatômica é também possível [5,6]. Para tal, é necessário retirar juntamente com o óstio coronário um generoso retalho da parede posterior da artéria pulmonar (Figura 1) e, anastomosá-lo ao bordo posterior do orifício aórtico recém-criado, formando assim a parede posterior do neotronco coronário esquerdo. A parede anterior é confeccionada com fragmento de pericárdio autólogo fixado em glutaraldeído. O tronco pulmonar é reconstituído com um segundo retalho de pericárdio autólogo com formato adaptado ao que foi previamente retirado.

No tocante à plastia da valva mitral, o anel foi plicado a nível das comissuras, segundo técnica de REED et al. [3], utilizando-se quatro fragmentos de pericárdio bovino para reforço das suturas. Com a melhora progressiva da função ventricular esquerda, houve concomitante aumento de hemólise mecânica provocada por jato de regurgitação em região comissural, levando o paciente a níveis séricos elevados de bilirrubina. Este tipo de hemólise é causado pela colisão direta de jato de regurgitação (Figura 2) sobre os fragmentos de pericárdio bovino [7]. Quando esta situação se apresenta, a reoperação para retirada do material e possível troca valvar deve ser considerada [7]. No presente caso, a troca valvar não foi necessária, apenas remoção do pericárdio e anuloplastia com monofilamento na porção posterior do anel.



Baseando-se na boa evolução e aplicabilidade técnica do reimplante da artéria coronária esquerda, mesmo em situação de exceção, acreditamos que o tratamento cirúrgico desta anomalia congênita deva ser empregado o mais precoce possível. Ressaltamos que, em semelhante caso, preconizamos esta técnica cirúrgica. Outrossim, diante de hemólise persistente, a reintervenção cirúrgica sobre a valva mitral deve ser considerada quando se detecta jato de regurgitação sobre material utilizado na confecção de plastia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Castaneda AR, Jonas RA, Mayer JE, Hanley FL. Coronary artery anomalies. In: Cardiac surgery of the neonate and infant. Philadelphia:WB Saunders;1994. p.301-13.

2. Vouhe PR, Tamisier D, Sidi D, Vernaut F, Mauriat P, Pouard P et al. Anomalous left coronary artery from the pulmonary artery: results of isolated aortic reimplantation. Ann Thorac Surgery 1992;54:621-7.

3. Reed GE, Pooley RW, Moggio RA: Durability of measured mitral annuloplasty: seventee-year study. J Thorac Cardiovasc Surg 1980;79:321-5.

4. Vouhe PR, Vernant F. Encyclopédie medico chirurgicale. Thorax - Tome 2. Paris: Elsevier; 2003 p.710.

5. Sese A, Imoto Y. New technique in the transfer of an anomalously originated left coronary artery to the aorta. Ann Thorac Surg 1992;53:527-9.
[ Medline ]

6. Tashiro T, Todo K, Haruta Y, Yasunaga H, Nagata M, Nakamura M. Anomalous origin of the left coronary artery from the pulmonary artery: new operative technique. J Thorac Cardiovasc Surg 1993;106:718-22.
[ Medline ]

7. Lam BK, Cosgrove DM, Bhudia SK, Gillinov AM. Hemolysis after mitral valve repair: mechanisms and treatment. Ann Thorac Surg 2004; 77:191-5.
[ Medline ]

Article receive on sexta-feira, 1 de outubro de 2004

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